Crítica
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Sinopse
Arthur Fleck trabalha como palhaço em Gotham, e vive num apartamento minúsculo com a mãe idosa. Ele sofre com diversos distúrbios psicológicos, mas sonha em construir uma carreira estável como comediante. Quando a violência da cidade começa a afetá-lo, ele passa a reagir de modo cada vez mais agressivo a assaltantes e delinquentes. Munido de uma arma e de suas habilidades cômicas, cria o personagem do Coringa, referência para muitos habitantes de Gotham na luta contra o sistema opressor.
Crítica
Os principais filmes de heróis da indústria norte-americana têm sido marcados por tantas obrigações comerciais e narrativas que chega a ser um alívio se deparar com uma história tão livre quanto a de Coringa. Este projeto não carrega a obrigação de incluir dezenas de personagens, mostrar lutas excepcionais, gastar milhões em efeitos especiais, fazer referência a objetos, amuletos ou passagens específicas dos quadrinhos, de agradar adultos e crianças, de ser ao mesmo tempo progressista, mas não a ponto de chocar os conservadores, e tradicional, mas não a ponto de incomodar a juventude pluralista.
O diretor Todd Phillips extrai desta premissa algo muito mais simples, e ao mesmo tempo mais complexo. Ele investiga a psicologia de um único personagem, em sua história íntima, porém não biográfica (ou seja, nada linear, sem precisar passar por infância, juventude etc.), enquanto lança uma pergunta essencial: o que faz uma pessoa se tornar um psicopata assassino? Quais condições sociais, familiares e psicológicas são necessárias para o desenvolvimento de um indivíduo perturbado como Arthur Fleck?
O projeto transborda de ousadias para os padrões do gênero. Primeiro, o Coringa não é definido em oposição a alguém: ele não é visto como uma força contrária ao Batman ou a qualquer outro – todos os conflitos partem dele, e se resolvem no próprio personagem. Segundo, alheio à obrigação do espetáculo, Phillips cria uma cadência muito mais contemplativa, imersiva, em suspense gradativo rumo à explosão final. Para os jovens ultra conectados da Internet, o filme pode soar lento, o que se revela uma escolha interessantíssima para um estudo de personagem pop. Arthur/Coringa está presente em todas as cenas da história, com exceção de um único momento. O diretor e os produtores confiam no trabalho de Joaquin Phoenix a ponto de o incluírem em cerca de 120 dos 122 minutos de duração.
Felizmente, o ator está à altura do imenso desafio que possui em mãos. Phoenix parte de uma cena inicial de grande intensidade (o sorriso que ele mesmo força no rosto, algo previamente revelado nos trailers) e precisa aumentar a intensidade a partir disso, criando variações das risadas (ora naturais, ora voluntariamente artificiais), do modo de falar e se portar (infantil durante os sonhos, e depois sedutor e efeminado durante um programa de televisão). O protagonista se mostra às vezes lúcido em sua percepção social, e em outros momentos, imerso em seus delírios de perseguição e grandeza.
Existem diversos personagens dentro do Coringa, e tanto o roteiro quanto o ator conseguem construir a riqueza por trás de uma mente assassina. A narrativa se dedica a construir este personagem em tempo integral, da primeira à última cena, revelando uma nova faceta a cada instante. Em determinado momento descobrimos que algumas informações sobre o passado eram falsas, e depois percebemos que havia lacunas, distorções. Arthur não para de se criar, se reinventar, se modificar à nossa frente. Ao invés de apresentá-lo sumariamente para então lançá-lo num chamado à aventura, o filme faz desta construção pessoal a própria aventura.
Uma elaboração individual tão complexa é possível graças às escolhas certeiras de direção, montagem e direção de fotografia. Ao contrário do scope comum às epopeias com muitos heróis em cena, Coringa retoma o formato de tela tradicional 1.85:1, mais apropriado aos retratos pessoais do que aos espaços, além da textura granulada e do forte senso de ambientação para criar uma Gotham suja, decadente, falida. Mesmo assim, a cidade se mantém operacional, despejando suas contas sobre os habitantes mais pobres, associados a ratos, a vermes.
O filme efetua um belo trabalho estético na representação da luta de classes: por um lado, o lumpemproletariado vive literalmente na sarjeta, entre sacos de lixo e “super-ratos” que infestam a cidade (ironicamente, esta é a única referência a algo “super” nesta trama de vilões), por outro lado, a burguesia ocupa a política dos palácios protegidos e a mídia via palcos de televisão, de onde dizem o que querem e manipulam a verdade a gosto. A mãe de Arthur, Penny (Frances Conroy) representa o exemplo perfeito da alienação, a pobre que luta em defesa dos ricos e, não por acaso, associa-se a um quadro clínico de delírio e paranoia.
Aliás, é muito interessante que o traço físico mais característico do Coringa – sua roupa de palhaço, o sorriso, a maquiagem – seja expandido a todos os trabalhadores da cidade, que adotam a fantasia como uniforme na luta por uma revolução social. O que fazia dele único, na verdade, representava a mesma realidade dos demais, com o diferencial da mente frágil de Arthur, associada aos traumas da infância, ao contexto social explosivo, à falta de atendimento médico. Isso implica na dedução de que haveria, entre os outros anônimos de Gotham, outras figuras parecidas com ele, capazes de despertar semelhante revolta.
As críticas recorrentes ao filme por supostamente não tornar o protagonista um vilão malvado, como se esperaria do maniqueísmo infantil, apenas reflete nossa incapacidade de lidar com um psicopata realista. Existem diversos motivos pelos quais o protagonista mata – nenhum deles justifica a matança, e nenhum deles explica, por si só, a decisão de matar, no entanto, juntos, compõem uma leitura psicológica plausível. Para quem busca respostas fáceis visando condenações sumárias, este projeto não fornece uma recompensa evidente.
Phillips chega ao ápice de conceber um palhaço com máscara de palhaço, ou seja, uma dupla máscara, e uma tripla identidade, todas permitindo a Arthur concretizar os seus desejos sem sentir culpa. “Eu não tenho mais nada a perder, e nada mais pode me machucar”, confessa, num ato de desespero. Esta é a força do personagem: o fato de que, desprovido de laços sociais, não têm que se preocupar com o amanhã. O comediante fracassado de quem ninguém ri, que não conquista as garotas nem cria amigos, não precisa mais se importar com ninguém. O homem perigoso, neste contexto, não é aquele inerentemente perverso, e sim o indivíduo abandonado, a quem se negou afeto a vida inteira.
Talvez o aspecto mais incômodo desta narrativa seja a de enxergar em Arthur um marginal como tantos homens, uma figura capaz de identificação, ao invés do monstro asqueroso a quem se opor. O filme não defende o Coringa, nem o ataca, e nesta amoralidade (não confundir com imoralidade) se cria a apressada ilusão de condescendência. A iniciativa dialética consiste em jogar o peso desse julgamento nas costas do espectador, após apresentar uma infinidade de informações que fazem de Arthur uma figura tão condenável quanto terrivelmente humana.
Como nem tudo são flores, Coringa perde força em um ou outro detalhe: a utilização de uma trilha sonora óbvia, apesar de eficaz (“Smile” e “Send in the Clowns”, é claro), um recurso excessivo aos close-ups de Phoenix, dois flashbacks explicativos (prováveis concessões ao público médio), a recriação de uma cena antológica, porém pouco expressiva, envolvendo Bruce Wayne. No entanto, estas são questões menores perto do excepcional encontro entre Arthur e seu ídolo/figura paterna Murray Franklin (Robert De Niro), do embate entre o protagonista adulto e sua mãe, do reencontro com dois colegas de trabalho no apartamento e, especialmente, da magnífica cena final. Nem todos os espectadores percebem que o discurso perturbador, que evita nos dizer ao certo o que pensar sobre Arthur e sobre o Coringa, constitui a força deste filme, ao invés de sua fraqueza.
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