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Sinopse

Oficialmente, o primeiro caso de infecção pela Covid-19 se deu em 31 de dezembro de 2019, na cidade de Wuhan. Mas, a doança já tinha sido detectada em 01 de dezembro. Autoridades chinesas negaram a possibilidade de contaminação, ocultaram números e puniram os médicos que divulgaram o que viria a se tornar uma pandemia.

Crítica

Partindo do pressuposto de que todo filme acaba, inexoravelmente, se tornando documento de sua época – pela forma de abordar, revelar, privilegiar, entre outras coisas – Coronation tende a adquirir com o tempo o status de vital à compreensão de certas especificidades referentes à pandemia do Covid-19. Estilisticamente, no início a produção dirigida por Ai Weiwei se assemelha a uma ficção apocalíptica, algo ressaltado pelas frequentes (e belas, embora tristes) imagens aéreas das lugares quase desertos. É o tipo de vislumbre que remete diretamente às construções do gênero horror envolvendo pragas (doenças, zumbis, etc.) que colocam em risco a continuidade da humanidade. Crítico ferrenho do governo chinês, o realizador opta por mostrar como pequenas cotidianidades foram brutalmente reconfiguradas em virtude da possibilidade real e grave de contágio por um vírus sobre o qual ainda pouco de sabia. A maior parte da ação se concentra em Wuhan, cidade onde em 01 de dezembro de 2019 foi detectado o primeiro caso de infecção pelo novo coronavírus. O tom de denúncia ganha gradações distintas à medida que a calamidade avança rapidamente mundo afora.

O que inicialmente chama a atenção em Coronation é a eloquência de determinados vislumbres, principalmente os de profissionais de saúde combatendo a pandemia num hospital de campanha erguido em tempo recorde. Ai Weiwei ressalta o teor angustiante de certas circunstâncias por meio do tempo, como ao testemunhar o médico transitando demoradamente pelos corredores da unidade montada às pressas para receber os pacientes contagiados. Ele poderia muito bem lançar mão de elipses para resumir essa jornada por um cenário tensionado pela presença comprovada da ameaça invisível e até ali praticamente desconhecida. Mas, pelo contrário, nos obriga a minimamente perceber o quão exasperante é aquele trajeto interminável. Algo igualmente visto na enervante observação (por meio de uma câmera de segurança) dos protocolos exaustivos para os trabalhadores da linha de frente se despirem de todo o paramento necessário ao desempenho das funções. As pessoas são identificadas com seus nomes, pois o equipamento as despersonaliza.

Como se mudasse uma chave, de modo abrupto, Coronation abre-se a outros aspectos, mais concernentes à atuação do governo chinês. O tom queixoso prevalece nessa segunda metade que tem internamente características mais diretas. Para sublinhar o choque geracional conjurado pela crise sem precedentes recentes, Ai Weiwei troca quase drasticamente o foco, direcionando-o ao ambiente doméstico em que o filho (também cinegrafista) conversa com a mãe, antiga emérita do Partido Comunista chinês, sobre exatamente a atuação dos mandatários naquela situação. Enquanto a idosa faz questão de celebrar as benesses do regime vigente na verdadeira potência asiática, o rapaz tenta quebrar a casca da adesão irrestrita apresentando indícios de uma atuação não tão nobre na atual escala executiva. Nessa parte do filme, sobressai a capacidade de extrair apontamentos sintomáticos da nossa contemporaneidade, para isso valendo-se da interação doméstica com a qual tendemos a nos identificar. Depois, a indignação acaba se tornando a força motriz.

Coronation sacrifica a potência específica de algumas engrenagens por simplesmente aponta-las, sem a vontade de aprofundá-las devidamente, mas o faz claramente em função da amplitude do painel. Este é arrematado pela ousadia corajosa ao acusar o governo chinês de dificultar vários processos quanto aos infectados e mortos. É na fração derradeira que homens se dirigem diretamente à câmera sem saber exatamente o porquê de seus isolamentos – dizem que são utilizados como bombas de fumaça – e que um sujeito se voluntaria como exemplo doloroso dos que enfrentam o emaranhado burocrático para reaver pertences dos entes queridos falecidos. Aliás, Ai Weiwei, no intuito de oferecer um desfecho potencialmente ainda mais melancólico que o começo, verifica de perto as formalidades instituídas para entregar aos familiares as cinzas dos que se foram. Fica muito evidente, inclusive nas entrelinhas, que o cineasta percebe a burocracia como um sintoma dessa coletividade levada a acreditar na funcionalidade dos métodos acima da subserviência destes ao humano. A cena do empregado amassando restos mortais antes de embala-los é isso.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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