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Crítica


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Sinopse

Ao se mudar com a família para o sul da Itália, Marta, menina de 13 anos, prova os limites de uma cidade pequena e a influência opressora da religiosidade.

Crítica

A prática do catolicismo é marcada por várias liturgias. As missas, as cerimônias de matrimônio e os demais sacramentos são circunstâncias cheias de pompa, entendidas assim como adequadas para valorizar a vida, as renovações e os vínculos abençoados pelos supostos representantes de Deus na Terra. Tão logo chega à pequena cidade da Calábria, na Itália, com a mãe e a irmã mais velha, a pré-adolescente Marta (Yle Vianello) se depara com o evento religioso que aglomera os moradores em torno de um palco improvisado. O som não funciona como deveria e a vigília é marcada por micro tensões. Vários elementos são observados pela câmera da diretora Alice Rohrwacher como mundanos. É uma sutil e potente desconstrução da aura de santidade a priori contida nessa estrutura montada para fazer reverberar as palavras pretensamente santificadas do padre Mario (Salvatore Cantalupo). Corpo Celeste contém apontamentos sutis e orquestrados com senso de naturalidade sobre as características dessa localidade ainda bastante provinciana. Porém, não o faz parecendo uma simples e direta denúncia de costumes. Os principais aspectos dessa abordagem estão nas entrelinhas, na própria concepção das situações que, uma vez acumuladas, permitem a construção do painel denso e sensível.

Uma das principais cineastas de sua geração, a italiana Alice Rohrwacher utiliza de maneira excepcional a presença da novata Marta. Em outros filmes, a figura do recém-chegado serve frequentemente de muleta, sendo uma desculpa para o roteiro entupir as cenas de personagens que não param de explicar à forasteira (e ao espectador) como as coisas acontecem por ali. Em Corpo Celeste, as estranhezas da protagonista são bem diluídas nas intermitentes sensações de desconforto que ela experimenta. Seu deslocamento não é apenas territorial, pois as novidades não se restringem ao espaço. A cineasta se mantém próxima dessa menina, nos transformando em testemunhas privilegiadas dos pequenos indícios diários a respeito do que a aflige. Não é preciso Marta verbalizar o quanto se sente ansiosa para crescer, bastando para isso mostra-la vestindo o sutiã da irmã. É um gesto simples que carrega inúmeros significados. Tendo em vista que ela transfere aos seios a confirmação de que estaria em pleno desenvolvimento, fica implícita toda uma construção social. Essa capacidade excepcional da encenação, a de condensar muita informação em acenos e ocasiões aparentemente banais, mas consistentes, permanece quando somos pontualmente descolados da jovem introspectiva.

O diálogo no qual membros da família de Marta escancaram uma xenofobia estrutural é hipoteticamente corriqueiro, mas serve para termos outra noção fundamental de como funciona essa comunidade asfixiante. Em Corpo Celeste, o desenho do novo cenário ofertado a Marta é feito basicamente nesse processo de exposição gradual e orgânica, não virando algo meramente informativo. Nenhuma personagem fala abertamente sobre a predominância patriarcal, mas em vários instantes há indícios de subserviência feminina, principalmente reproduzida/fomentada pelas hierarquias da igreja. Santa (Pasqualina Scuncia), a beata que doa grande parte do seu tempo à catequese e a cuidar do padre, é vital para compreendemos o desconforto acumulado nas redondezas. Seus esforços para instruir os adolescentes quanto aos preceitos do catolicismo esbarram na quase completa falta de reciprocidade. Isso escancara um abismo geracional e, por conseguinte, o anacronismo da Santa Sé (reforçado pela inquietude paroquial). Por sua vez, Marta parece não saber onde se abrigar, se na obediência pregada na eucaristia ou nas descobertas ofertadas pelos ritos naturais da existência.

A própria noção de “corpo” no filme é múltipla. Há o de Marta, prestes anunciar transformações; o corpus da comunidade em que a religião e a política têm relações intestinas; e a estrutura física/simbólica do Cristo morto na cruz. Alice Rohrwacher entrelaça o dialeto cristão e uma linguagem mundana. Por exemplo, a primeira menstruação vem quando a protagonista está para ser consagrada na crisma, ou seja, a natureza batiza a sua maturidade antes. Também fica subentendida a alegoria entre o sangue de Jesus e aquele que verte da menina. A menstruação não seria uma espécie de milagre habitual, explicado pela ciência, mas ainda assim capaz de provocar admiração? É preciso ressaltar também a quase simbiose entre a câmera semidocumental de Alice, colada na gente, e Yle Vianello, cuja representação de timidez torna ainda mais forte a sensação da insegurança de Marta. A voz grave da atriz contrasta com seu corpo franzino e o semblante ainda infantil. Ao redor da personagem, tradições, interdições, frustrações e silenciamentos. Tensões de toda sorte. Por um lado, há a excessiva valorização de cultos e regras, como se a disciplina fosse um caminho inequívoco até Deus. Por outro, e como decorrência dessa concepção, a substancial negligência das maravilhas cotidianas.

Filme assistido online durante a 8 ½ Festa do Cinema Italiano, em junho de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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