Crítica
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Crítica
A austeridade do cenário principal de Corpo e Alma é ocasionalmente quebrada pela imagem idílica e, por isso mesmo, deslocada do contexto dominante, de dois cervos, um macho e uma fêmea, vivendo na floresta. Só mais adiante sabemos que tal oásis de beleza em meio a matança cotidiana é fruto de um sonho conjunto, excepcionalidade que trata de juntar duas pessoas absolutamente feridas, cada qual à sua maneira. Endre (Géza Morcsányi) é o diretor financeiro do matadouro onde Mária (Alexandra Borbély), a nova responsável pelo controle de qualidade, começa a trabalhar. Ele é um sujeito boa praça, admirado e respeitado pelos subalternos, acometido por um problema que deixa seu braço esquerdo em permanente dormência. Já ela possui uma memória prodigiosa, é metódica ao extremo, sendo capaz de rebaixar a classificação das carnes por conta de míseros dois milímetros a mais de gordura. Ambos estão metaforicamente fechados em caixas refratárias ao afeto, pois endurecidos.
Os momentos iniciais de Corpo e Alma são abertamente de contextualização, com a cineasta Ildikó Enyedi se demorando, às vezes demasiadamente, no registro dos pormenores do ambiente laboral. Acompanhamos a matança bovina, inclusive com direito a decapitação de um animal previamente abatido. São cenas fortes, mas absolutamente funcionais para reforçar a importância daquele entorno, enquanto contraste ao amor surgido em terreno improvável. Por conta de um incidente com o produto químico utilizado para estimular o cruzamento animal, uma investigação se põe em curso, com a ajuda de uma psicóloga. Durantes tais sessões, Endre e Mária descobrem sonhar diariamente a mesma coisa, sendo ele o cervo macho e ela a fêmea vivendo a liberdade num bosque com direito a riacho. A partir daí, a curiosidade se encarrega de derrubar algumas barreiras, de aproximar corpos até então isolados, numa prevalência de certa animalidade que atenua a grande barreira das neuroses.
Porém, antes de conseguir, ao menos, tentar uma entrega, os protagonistas de Corpo e Alma precisam resolver-se internamente. Mária é a que tem o percurso mais difícil e doloroso. As frequentes consultas com um terapeuta infantil, que a atende desde a tenra idade, é um indício de questões antigas, como a dificuldade de estabelecer contato físico. Ela luta bravamente contra esse empecilho, melhorando a olhos vistos, chegando a dizer publicamente ao pretendente como o acha bonito. O fato dos dois possuírem deficiências, ele física e ela emocional, os magnetiza de alguma maneira. Na medida em que a trama evolui, da construção atmosférica ao mergulho mais profundo na subjetividade dos personagens, o longa-metragem de Ildikó Enyedi ganha pungência, deixando para trás o caráter deliberadamente engessado do princípio. Tal movimento beneficia a fruição, pois torna gradativamente mais intrigante e cativante acompanhar o envolvimento de Endre com Mária, relação de amor bem singular.
A dureza do semblante de Mária – numa interpretação destacada de Alexandra Borbély, por conseguir expressar um histórico de internalização de sentimentos e desejos – vai se dissipando com a aceitação do sentimento novo. Endre, por sua vez, não passa por uma transformação tão sensível, mas é o elo permanente entre o casal e a dinâmica do matadouro, espaço de brutalidade cotidiana contraposto pela beleza poética do sonho a dois se tornando realidade aos trancos e barrancos. Dentro desse itinerário estilístico bastante sólido de Ildikó Enyedi, afeto e violência se alternam organicamente, como na forte sequência da tentativa de suicídio frustrada por um contato providencial. Fala-se de paixão ao telefone vertendo sangue aos borbotões, exatamente como maneira de mostrar o antídoto para as dores do existir. Corpo e Alma não é propriamente um filme fácil de assistir e digerir, mas, uma vez capturados pela complexidade que paira sobre o relacionamento central, somos brindados com uma riqueza de detalhes que dá conta de apresentar um engajamento tão original quanto essencial.
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