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Crítica


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Sinopse

Mesmo que seja instável, um pai fica ao lado de sua filha quando esta diz identificar-se com o sexo masculino. Bem intencionado, o sujeito fugirá então com o filho trans para longe da mãe que não o aceita.

Crítica

Cowboys é um filme que é fruto do seu tempo. É difícil imaginá-lo sendo feito há duas ou três décadas (ou mais). Não por isso, deixa de ter ressonância. Aliás, muito pelo contrário. Afinal, aborda um tema urgente, que há muito vem sendo ignorado – felizmente, as condições atuais, por mais que não sejam as melhores, proporcionaram espaço para tais debates. A diretora Anna Kerrigan, após uma série de trabalhos em curtas-metragens e na televisão, finalmente estreia com seu primeiro longa profissional falando de transfobia, orientação e identidade sexual e pré-conceitos (mais do que preconceitos) na raiz de famílias do interior de um país tão cosmopolita quanto diverso – e que, por isso mesmo, precisa parar de se imaginar como um todo absolutamente igual, mas capaz de dar vazão à diferentes discursos e posições. Por mais que o enredo transite por lugares-comuns e soluções um tanto simplistas, há mérito em sua abordagem e na luz que oferece ao assunto apontado.

Ainda que a soma de elementos como “vida no campo” e “diversidade sexual” no cinema remeta o espectador mais casual direto a um título como o oscarizado O Segredo de Brokeback Mountain (2005), Cowboys está diretamente relacionado a uma outra produção que é sua contemporânea, o drama Palmer (2021). Em ambos se tem um suposto durão, um homem recém-saído da prisão que, a despeito de qualquer ideia antecipada que se possa ter a seu respeito, acaba sendo o único a demonstrar sensibilidade em relação ao dilema vivido por uma criança que, de uma forma ou de outra, acaba se tornando próxima a ele. No filme estrelado por Justin Timberlake, ele se afeiçoa por um menino, filho de sua inquilina, que mesmo pequeno já revela uma postura homossexual. O garoto é gay, e não tem dúvida quanto a isso. A mãe está envolvida por demais com os próprios problemas, o pai não existe nesse cenário e cabe ao rapaz sem missão assumir a segurança do menino como responsabilidade sua. O que se percebe na história contada por Kerrigan é bastante similar.

Há algumas sutis, e importantes, diferenças, no entanto. Dessa vez, não se trata de um vizinho se tornando ciente de um drama vivido na casa ao lado. A questão está mais perto, e mais íntima. Troy (Steve Zahn, investindo em um lado menos explorado seu, resguardando o já conhecido potencial cômico que possui, em uma mudança que lhe cai bem) é apaixonado pela esposa, Sally (Jillian Bell, também dosando bem seu histrionismo habitual), e pela filha, Joe (a revelação Sasha Knight). O que se sabe, porém, desde os primeiros minutos de filme, é que Sally, ao acordar, encontra a casa vazia. Troy e Joe foram embora, e a deixaram para trás. O que teria motivado o marido a deixar a esposa e partir com a filha? Teria ele sequestrado a garota, ou atendido a um pedido da criança? São ideias como essa que lentamente vão sendo desconstruídas. As perspectivas se alteram. Por mais que se trate de uma trama de estrada, de uma jornada de transformações, há certas verdades que serão assumidas muito cedo. E o quanto antes esses personagens forem capazes de lidar com os fatos, melhor será para cada um.

Ao prestar queixa pelo desaparecimento, a mãe entrega à delegada Faith (Ann Dowd, em mais uma composição superlativa) uma foto da filha com cabelos compridos e usando um vestido. Por outro lado, em nenhum outro momento o espectador será confrontado com essa imagem. Sempre que Joe aparece em cena, tem em seu corpo trajes masculinos e cabelos bem curtos. Mas não os usa por obrigação. Assim é como se vê. O contrário que lhe era imposto. A mãe que não aceitava sua real natureza e o obrigava a se portar como menina. Mas Joe deixa claro, e é com o pai que consegue verbalizar: “eu posso ter nascido desse jeito, mas é um menino que enxergo cada vez que olho no espelho”. Uma declaração dessa pode ser muito dura para os pais. Mas como cada um irá agir a partir dela é que fará a diferença na vida daquela criança. Uns poderão impor, até mesmo obrigar um comportamento que muito provavelmente não mais se encaixe. Outros podem simplesmente optar por respeitar o que foi dito e se esforçar para criar o ambiente propício para que essa nova realidade possa se manifestar e se desenvolver com segurança. Troy opta por esse segundo caminho.

Se em alguns momentos Cowboys força a narrativa com explicações por demais evidentes – a relação com o título, por exemplo, se dá de maneira bastante óbvia – e por vezes também exagere no melodrama – o destino paterno força uma sensação em busca de uma emoção imediata, apenas para ser amenizada logo em seguida – este é um filme que ganha pontos por evitar figuras rasas – cada um dos envolvidos possuem motivos bem explorados e não estão fechados ao que de novo se impõe – e por se preocupar mais com as relações entre eles do que pelos atos que praticam em si. O esforço em tornar tudo esclarecido – como a justificativa para o pai ter ido parar na prisão – se mostra desnecessário, como se houvesse uma obrigação em fazer de cada um deles boas pessoas desde suas origens, limpando e racionalizando seus eventuais erros, ao passo que tais processos também podem se dar entre aqueles não tão perfeitos (a maioria, portanto). Mesmo assim, como o nome da única autoridade já aponta – Faith, ou seja, Fé – é preciso acreditar que uma aceitação é possível. É essa certeza que permitirá um mundo melhor – tanto no indivíduo, como no todo.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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