float(5) float(2) float(2.5)

Crítica


3

Leitores


2 votos 5

Onde Assistir

Sinopse

Casados, Jaroslav e Blanka vivem às turras. Ele pede que sua mãe ceda o apartamento a ela.    

Crítica

Todo filme tem uma lógica interna. Seus elementos são por ela regidos, não necessariamente se submetendo às regras da realidade. Por exemplo, as leis da física podem ser subvertidas e mesmo o entendimento das coisas mais elementares são passíveis de ganhar contornos que melhor cristalizarem a imaginação dos criadores. Dito isso, Cozinhar F*der Matar abraça veementemente as potencialidades do absurdo, demonstrando uma liberdade enorme de fabulação. A cineasta Mira Fornay não está nada preocupada em apresentar circunstâncias que façam sentido (mesmo o mais disparatado deles). Aparentemente, ela pretende fisgar a atenção do espectador pela curiosidade, resetando literalmente a trama todas as vezes (duas, na verdade) em que a morte acabar com planos do protagonista. Este é Jaroslav (Jaroslav Plesl), motorista de ambulância que demonstra urgência diante da impossibilidade de entrar na propriedade da avó para verificar a integridade física de seus três filhos. A cerca é baixa, perfeitamente transponível. Ainda assim a impotência prevalece.

O trajeto ao apartamento da mãe de Jaroslav é demarcado por esse estranhamento. Um grupo de mulheres o persegue, um policial adverte à queda da jukebox que pode mata-lo, isso até ele cozinhar como forma de convencer a genitora a simplesmente doar o apartamento para sua esposa policial. Por quê? Não importa. Prevalece uma disfunção familiar em Cozinhar F*der Matar, haja vista as configurações observadas como elementos desestabilizadores – o sogro casado com a mãe, a violência doméstica, a subserviência do sujeito desesperado para não ser abandonado (como seu pai foi). Sem mais aquela, a realizadora estabelece que o ato de cortar legumes e preparar refeições é uma espécie de sintoma de sujeição, isso sem qualquer intenção de sustentar a observação. Os personagens são escrotos com consanguíneos, agressivos impunemente, atentam contra a vida de pessoas chegadas e mencionam circunstâncias esdrúxulas. A nós apenas resta esperar para testemunhar a próxima bizarrice sem nexo. As motivações são abolidas e o non sense se torna um imperativo.

Lá pelas tantas, parece que Mira Fornay colocou os componentes do enredo numa roleta e a girou, dispondo alternadamente os resultados de acordo com a sorte. Rompendo a aparente aleatoriedade, dá para perceber uma tentativa de discutir gêneros nessa sociedade local, com o protagonista sofrendo por sujeitar-se à esposa entendida como provedora. Porém, para que os apontamentos tivessem alguma reverberação, Cozinhar F*der Matar teria de se esforçar a fim de compreender as particularidades e, minimamente, o funcionamento dessa coletividade. Mas, não. Um dos efeitos colaterais de fazer da morte um estopim da reinicialização é, de certa forma, banalizar a extremidade do que é brutal. A partir do primeiro reboot, fica claro que, não importa a carga de selvageria imposta a outrem, pois sempre haverá a alternativa de redesenhar a realidade. Também é curioso que a agressividade física seja um pressuposto masculino e a equivalente psicológica seja mais claramente observável no comportamento feminino. Apontamentos frequentes que redundam em nada.

Cozinhar F*der Matar apresenta algo interessante na sua fração derradeira, ao inverter o gênero do protagonista, tornando objetivo seu questionamento prévio: “e se eu fosse mulher?”.  Mira Fornay aponta a caminhos férteis, mergulha de cabeça num universo pretensamente não regido por códigos cartesianos, mas delega convenientemente ao espectador a missão de juntar os tantos cacos (alguns deles fundamentalmente incompatíveis). A atmosfera, tão importante para conferir potência aos exemplares não condicionados estritamente pela tradição da racionalidade, aqui é fruto de uma composição pobre, feita basicamente pela câmera na mão (que tenta, em vão, sinalizar uma instabilidade intermitente) e do arrojo de embaralhar as possíveis coerências. Deflagrar a insuspeita natureza cíclica da história é o que de melhor o filme tem, mas se trata de uma jogada tardia, disposta como xeque-mate nos possivelmente desorientados frente aos tantos absurdos encaixados vagamente. É insuficiente para ressignificar esse frustrante exercício de extravagância.

Filme assistido online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *