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Crítica


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Sinopse

Os irmãos Jack, de 19 anos de idade, Lisa, de 17 anos, e Mathis, de 10 anos, recebem a notícia de que o pai se suicidou durante uma viagem. Eles já tinham perdido a mãe há poucos anos. Agora, precisam decidir o que fazer com a guarda do irmão menor, e como se sustentar sozinhos. Enquanto isso, os desafetos do pai batem à porta cobrando as dívidas do falecido.

Crítica

A primeira cena sugere um suspense glacial. Um carro de luxo se encontra parado à beira dos trilhos do trem. Vemos o veículo à distância, sem enxergar o motorista. A cena estática, em cores frias, é interrompida pela aparição silenciosa do título. A cena seguinte aposta no realismo social comum ao cinema francês: Jack (Kacey Mottet Klein), jovem adulto, chama o pequeno irmão Mathis (Andrea Maggiulli) durante o treino de futebol. A câmera na mão, tremendo enquanto acompanha os personagens, além dos ruídos ao redor e da luz natural evocam um cinema bruto e humanista. Mero engano: mais uma cena se passa, e quando descobre o suicídio do pai, o menino de 10 anos tem uma crise histérica digna dos melodramas, incluindo trilha sonora melosa, objetos quebrados, gritos pelo corredor e corpos ao chão. Afinal, onde Crianças (2019) pretende ir? Quem seria o personagem principal, e por quais olhos acompanhamos a história? Às vezes, a narrativa sugere que Jack detém o ponto de vista, porém adiante aproximamo-nos da visão de mundo de Mathis. A partir da segunda metade, a direção se situa à distância de todos, observando a história de modo onisciente.

O diretor Christophe Blanc desenvolve um filme curiosamente desequilibrado. Primeiro, no tratamento dos personagens: embora apresente os três irmãos, a irmã do meio, Lisa (Anamaria Vartolomei), é deixada em segundo plano. O roteiro jamais se importa com os sentimentos e as decisões dela. O tio sem nome (Yves Caumon) atua como se estivesse num filme de máfia à moda antiga, adotando o olhar e os trejeitos do sujeito perigoso, inesperado em cenas naturalistas. Subitamente, outro tipo violento bate à porta, carregando todos os estereótipos do “marginal”: tatuagens no rosto, unhas pintadas, fala maníaca e aparência suja. Nenhuma dessas figuras aparenta conviver no mesmo universo, ora bastante naturalista, ora profundamente idealizado, repleto de estereótipos. Talvez o personagem de melhor construção psicológica seja o pai morto, ausente das imagens, porém descrito por múltiplas falas de terceiros. Este homem repleto de contradições adquire mais relevo do que as figuras da adolescente rebelde e do jovem adulto irresponsável, encarnadas pelos filhos. Durante uma reunião com a juíza, para decidir sobre o destino dos irmãos, o tom oscila entre a seriedade sepulcral, a comédia involuntária (vide as gafes do avô) e o melodrama.

Segundo, o tempo e os espaços são orquestrados em curto-circuito. A montagem de Muriel Breton salta cenas importantes, privilegiando outras de menor expressividade: logo após a descoberta do corpo, pula-se para a vida pós-enterro. Mathis reclama das aulas: “Os professores são gentis demais comigo”. Ora, por que não deixar o espectador presenciar o excesso de zelo por seus próprios olhos? Resta a impressão de que a montagem retira as cenas mais importantes para deixar outras que, na maioria dos dramas, teriam caído na mesa de edição. Caso quisesse realmente trabalhar com elipses longas e ríspidas, poderia optar por um estilo à la A Vida de uma Mulher (2016), drama histórico que saltava muito anos na vida dos protagonistas, ocultando casamentos e partos num corte simples. No entanto, Blanc opta por uma estrutura nem totalmente linear, nem fragmentada. A narrativa esburacada ignora o período do luto, porém dedica três sequências a uma iguana de valor simbólico limitado. Os personagens passam de um apartamento ao outro, da França à Espanha, sem que o espectador saiba ao certo onde se encontra o tio, a irmã, e os desafetos tatuados do pai. Blanc possui dificuldade de situar as situações no espaço-tempo, criando um senso de dispersão equivalente ao narrador que começa a contar uma história antes de se perder e evocar outras, não relacionadas.

As estranhezas de Crianças poderiam produzir um efeito criativo, caso este estilo se desenvolvesse, e as cenas estabelecessem uma coerência interna pela estética ou pelo discurso. Ora, depois de dezenas de minutos ignorando a saudade do filho mais velho, a direção dedica uma cena tristíssima de luto com a namorada dele, incluindo um zoom e uma trilha sonora tão invasiva que remete às orquestrações de Georges Delerue para a Nouvelle Vague – um registro dissonante dentro deste contexto. O pesadelo próximo do terror gore possui interesse em si mesmo, entretanto, soa desconexo com as cenas ao redor. Em paralelo, algumas cenas são concebidas para o máximo impacto emocional (o diálogo “Me diz alguma coisa gentil. Mente para mim!”), no entanto, aparentam artificialidade, sendo difícil conceber uma criança de dez anos de idade, em período tão confuso, manifestando tamanho recuo e capacidade de abstração. O drama se ressente de uma produção firme para nivelar esses trechos dentro de um único tom: a direção e o roteiro possuem conceitos em excesso, pouco compatíveis entre si, se negando a abrir mão de determinadas ideias em nome de uma experiência homogênea.

Pelo menos, nos trechos realistas, percebe-se por trás da trilha sonora e dos estranhos movimentos de câmera o trabalho dedicado dos atores. Kacey Mottet Klein tem desenvolvido significativamente as suas habilidades desde a condição de ator mirim, e o pequeno Andrea Maggiulli possui uma composição verossímil, ainda que o roteiro reserve poucos instantes de afeto entre os irmãos. Angelina Woreth está excelente nas poucas cenas de Maureen, antes de o roteiro se esquecer de sua presença para se concentrar em outros conflitos. Os adolescentes e jovens adultos estão bem dirigidos dentro das normas de um drama naturalista e cru. Quando a câmera se concentra apenas neles – o que corresponde a mais de metade das cenas -, o resultado convence. No entanto, a intromissão do mundo ao redor, com suas iguanas, pedaços gigantes de presunto, ladrões e passeios turísticos pela Espanha não se justificam por completo nesta história. Blanc abre o escopo para tantas cidades e personagens coadjuvantes que se esquece de abordar a solidão dos irmãos que acabam de perder o pai. O diretor vai longe demais à procura de algo que se encontrava junto do trio central, dentro de um apartamento, nas trocas cotidianas que tanto fazem falta nesta jornada.

Filme visto online no 11º MyFrenchFilmFestival, em fevereiro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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