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Sinopse
Criaturas da Mente tem o sonho como motor da revolução humana. Esse é o mote de Sidarta Ribeiro, neurocientista brasileiro que, há 20 anos, estuda os mistérios do sonhar. Explora como os sonhos e outras formas de acesso ao inconsciente podem transformar a experiência humana. Em sua investigação, propõe unir os saberes ancestrais dos povos originários e de origem africana no Brasil ao conhecimento científico, além de uma reavaliação científica das experiências com alucinógenos. Exibido na sessão de abertura do 57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (2024).
Crítica
“Tudo fica mais fácil quando se entende que existe gente dentro da gente”, afirma, sem espanto ou como se tratasse de uma grande revelação, mas, pelo contrário, ciente de estar diante de uma obviedade, o ambientalista e filósofo – e imortal da Academia Brasileira de Letras – Ailton Krenak. Ele faz referência, importante esclarecer, às vozes internas de qualquer indivíduo, aquelas que na maior parte do tempo se opta por ignorar, mas que, em alguns casos, podem fazer a nítida diferença entre o erro e o acerto. Krenak, no entanto, não é o foco de Criaturas da Mente (por mais que sua frase seja o melhor resumo sobre o que esse filme se debruça). Nem mesmo Sidarta Ribeiro, neurocientista e escritor que, em mais de uma passagem, faz as vezes de guia da narrativa. Sim, pois se alguém está à frente, apresentando certezas e propondo perguntas, é porque antes alguém o provocou. E é aqui onde se encontra Marcelo Gomes, diretor e roteirista, principal responsável por esta obra. Não apenas por sua assinatura. Mas por ser tal conjunto resultado de uma inquietação sua. Este viés é que faz da jornada um passeio muito pessoal, e por isso mesmo, envolvente.
Marcelo Gomes não consegue mais dormir. E o que para ele é ainda pior: não lhe é mais permitido, portanto, sonhar. Como adentrar no mundo onírico sem que as pálpebras descansem, sem que o cérebro se mostre numa outra sintonia e sem se permitir levar pelo que habita o inconsciente, distante das urgências e dos compromissos do dia a dia? Mas ele não está sozinho. Afinal, esse mal lhe abateu durante a pandemia de Covid-19, entre 2020 e 2021. Como se sabe, foi apenas um dos tantos efeitos colaterais que o trauma sanitário mundial deixou como herança. Criaturas da Mente, porém, não é mais um dos tantos “filmes pandêmicos”, esforços repletos de limitações que surgiram durante esse período e que ficarão para a posteridade mais pelas angústias que os geraram do que pelos dizeres redundantes que, de uma forma ou de outra, conseguiram exprimir. Não, o caso aqui é outro. Tem-se um efeito, e não a causa. Fala-se, enfim, de algo que resultou como consequência.
Sonhar não é privilégio dos homens. Animais também sonham, quiçá até mesmo as plantas (mas, sobre elas, talvez seja assunto para outro estudo). A mera descoberta de que polvos, por exemplo, são capazes de sonhar, e por meio deste processo, reter seus aprendizados e assim se condicionar para as lidas do cotidiano, tornando-se seres melhores e adaptáveis, provocou profundas reflexões em Gomes. Se o octópode precisa sonhar, imagina o ser humano? Não era mais uma situação qualquer, como se percebe. O assunto é sério. E o cineasta encontrou em Sidarta Ribeiro alguém com quem pudesse compartilhar suas dúvidas. Por vezes um assume o protagonismo, mas logo em seguida o outro retoma a frente. Um é o narrador, enquanto o segundo assume com tranquilidade e leveza a função de entrevistado. Mas ambos são mais. E no jogo que se estabelece entre eles, o espectador os acompanha com crescente interesse.
Melhor não esperar revelações transformadoras durante os quase 100 minutos de Criaturas da Mente. Marcelo Gomes não é um cientista, por mais que o papel de pesquisador lhe sirva com folga. A busca pela melhor imagem, aquela que parece ter lhe fugido no momento de descanso e de criação, se não lhe ocorre mais naturalmente, eis a necessidade de investigar onde ela pode ter ido parar. Por isso recorrer a Sidarta, alguém que fala do assunto com propriedade. Também a presença de Krenak, que discorre como poucos sobre aquilo que está além dos olhos, incapaz de ser comprovado pela materialidade, mas factível pela ciência daquele que se coloca humilde frente os mistérios da vida. O diretor se mostra parte de um processo. A decisão de ele mesmo se colocar no centro dos acontecimentos, experimentando em si aquilo que muitos se afirmam contentes em apenas teorizar, confirma essa disposição. Sua conclusão, após tal vivência, é tão inesperada quanto sincera.
Conhecido por longas de ficção celebrados por festivaleiros e cinéfilos no Brasil e no exterior, Gomes se volta mais uma vez ao documentário, oferecendo um testemunho talvez não tão sensível quanto o percebido em Estou me guardando para quando o carnaval chegar (2019), mas que, assim como esse, surge por meio de uma inquietação pessoal, se sustenta pela curiosidade compartilhada com a audiência e se mantém sólido ao agregar elementos que, dispersos, não encontrariam a mesma força enquanto discurso. Criaturas da Mente se dirige ao perseguido, ao ausente e escondido, aquilo que somente com dedicação se mostrará disposto a um entendimento nunca definitivo, mas disposto a um conhecimento contínuo e crescente. Longe de se bastar, mas sempre pronto para um novo desdobrar de descobertas e revelações.
Filme visto no 57º Festival de Brasília, em novembro de 2024
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