Crítica
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Sinopse
Alicia entra em desespero quando o filho Daniel é preso, acusado de agredir fisicamente a ex-esposa que não o permite ter a guarda da criança do casal. Enquanto se dedica à liberação de Daniel, ela lida com outra tragédia dentro de casa: o julgamento da empregada doméstica, Gladys, acusada de assassinato.
Crítica
No título deste suspense, o elemento mais importante é o substantivo no plural: “crimes”, ao invés de “crime”. Não é incomum encontrar narrativas onde sucessivas ilegalidades são cometidas para acobertar o delito original. Aqui, no entanto, trata-se de casos distintos e simultâneos, aparentemente não relacionados. A família de Alicia (Cecilia Roth) precisa lidar com dois escândalos dentro de casa: enquanto o filho Daniel (Benjamín Amadeo) é acusado de tentar assassinar a ex-esposa, a empregada doméstica Gladys (Yanina Ávila) enfrenta seu próprio processo penal. O roteiro faz questão de ocultar as explicações sobre os julgamentos paralelos, para então soltá-los a conta-gotas. Aos poucos, descobrimos exatamente em que circunstâncias Daniel teria agredido a mãe de seu filho, além da versão desta última sobre o caso. Gladys é vista caminhando por um corredor escuro, até percebemos o que ela faz no local, e compreendermos de que maneira o flashback recorrente está associado a um possível crime. A estrutura se desenvolve de maneira simples: o filme anuncia dois acontecimentos graves desde o princípio para despertar nossa atenção, retendo em seguida as informações que poderia facilmente revelar desde o início. A tensão nasce menos dos fatos em si do que da montagem e da narrativa propositadamente fragmentada.
A sequência propõe um duplo filme de tribunal, com ambos os julgamentos acontecendo simultaneamente. Cada um deles possui um seguimento previsível, ainda que o paralelismo sugira que tenham algo em comum, e que estejam conectados de alguma maneira. Três quartos da trama se passam até o diretor Sebastián Schindel enfim destrinchar a esperada associação entre as subtramas. Talvez Crimes de Família enveredasse pelo drama caso revelasse suas cartas ao espectador desde o princípio. Neste caso, esta se tornaria uma história de abusos físicos e psicológicos, enquanto aprofundaria o tema da justiça clemente reservada aos ricos, e intolerante quando destinada aos pobres. Há um subtexto socioeconômico importante na trama, ainda que jamais explorado a fundo. Os criadores preferem brincar de quebra-cabeças com o público, convidando-nos a tecer nossas próprias hipóteses a respeito da inocência ou culpabilidade dos réus. O seguimento das investigações é tão competente em termos de produção quanto anticlimático enquanto thriller: não há grandes reviravoltas dignas de nota antes dos últimos vinte minutos. Os dois mistérios são muito mais transparentes do que poderíamos imaginar, e uma vez que os réus e vítimas prestam depoimentos, os vereditos são estabelecidos com rapidez.
Esta condução produz um efeito curioso. Por um lado, o ritmo é fluido e agradável, repleto de cenas bem filmadas entre Alicia e o marido Ignacio (Miguel Ángelo Solá), além de interações verossímeis entre patroa e empregada no âmbito doméstico. Por outro lado, o discurso tarda a assumir o seu ponto de vista. Primeiro, ele parece observar todos os personagens de fora, supostamente sem tomar partido, e tampouco enxergando o mundo pelos olhos de qualquer um deles. Uma proposta típica de imersão no suspense policial consiste em coincidir a visão do espectador com aquela de um protagonista específico, permitindo que descubramos unicamente o que o personagem também sabe. Aqui, no entanto, estamos posicionados a igual distância de todos. Daniel aparece pouco durante a trama, tem direito a poucas falas, e recebe momentos não relacionadas ao processo. Gladys é observada enquanto uma figura limitada e indefesa, e exceto pela forte cena com a psicóloga, não tem oportunidades de transparecer a relação familiar, os problemas afetivos, o trauma de infância, ou a vida fora da casa dos patrões. O fato é que o roteiro se importa muito pouco com estas figuras convenientemente ignoradas na conclusão. Na reta final, Crimes de Família expulsa quase magicamente Ignacio do cenário e permite a Alicia monopolizar a narrativa por W.O.
Neste momento, o filme enfim admite seus objetivos, ocultados desde o início, junto dos detalhes sobre os crimes. O projeto decide observar a história baseada em fatos enquanto conto moral. Depois de uma resistência protocolar pelas rédeas dos filmes de julgamento, a conclusão assume a preocupação central com a maneira como a mãe e patroa é afetada pelas investigações. Esta mulher rica, esnobe e fútil vai sendo gradativamente perdoada: ela não se importava muito com a empregada, mas fornecia meios para que o filho dela tivesse uma boa educação. Ela acobertava as atitudes do filho, mas ignorava o que ele tinha realmente feito. Imagine um novo Que Horas Ela Volta? (2015), porém contado pelo ponto de vista de Bárbara (Karine Teles), considerada uma patroa muito gentil por receber Jéssica (Camila Márdila) em sua casa e hospedar a empregada Val (Regina Casé) no quartinho dos fundos. Rumo ao final do projeto argentino, qualquer ambiguidade em relação a esta mulher é eliminada. Ela remedia seus atos, ultrapassando preconceitos em nome de ações benevolentes. Rumo ao término, o projeto constitui um mea culpa da burguesia argentina, desculpando-a pela corrupção e pelo abuso de poder, porque no fundo tiveram boas intenções. Qual mãe não subornaria o sistema judiciário para libertar o filho, não é?
No elenco, embora as atenções se concentrem em Cecilia Roth, os destaques cabem aos coadjuvantes, que roubam a cena. Miguel Ángelo Solá se sai muito bem com os diálogos cotidianos, sobretudo na briga com a esposa. Yanina Ávila já tinha causado fortíssima impressão em Uma Espécie de Família (2017), e repete a proeza no projeto de 2020. O cinema argentino poderia aproveitar melhor esta talentosa atriz não-profissional, com apenas dois filmes na carreira. Cecilia Roth demonstra empenho, ainda que algumas cenas-chave (a catarse com a louça quebrada) sejam tristemente mal filmadas e editadas. O peso dos olhares alheios e dos julgamentos das amigas poderia exercer uma influência muito maior nesta mulher, mas a narrativa jamais permite que o mundo exterior venha a acrescentar profundidade psicológica à figura resumida a um único conflito interno: tomar a atitude moralmente correta. Resta a impressão de que a potente história foi contada pelos olhos errados. Como seria a mesma trama pelo ponto de vista de Gladys, de Daniel ou da ex-esposa dele, Marcela (Sofía Gala Castiglione)? O projeto foge a todas as pessoas envolvidas diretamente nos crimes, como se a verdadeira vítima fosse a mãe, a pobre mulher rica que não sofre agressão alguma. O processo judicial se apequena e foge a questões políticas evidentes. Em paralelo, a desigualdade social se torna um problema passível de conserto pela boa vontade e pelo perdão.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 5 |
Francisco Carbone | 7 |
Leonardo Ribeiro | 6 |
MÉDIA | 6 |
Achei o filme ótimo, mas, embora desconheça a lei penal argentina, considerei descabida a condenação de Gladys a 18 anos pelo infanticídio. No Brasil, a pena máxima é de seis anos - e pode-se alegar, em defesa da ré, a depressão pós-parto. No caso de Gladys, é visível sua fragilidade emocional e cognitiva, o que poderia condicionar o cumprimento de sua pena a um trabalho psicológico ou até psiquiátrico, possivelmente numa instituição manicomial. O trabalho de seu advogado foi consistente e até conseguiu sugerir que a morte do bebê poderia ter ocorrido por acidente, o que, pela dúvida, desqualificaria o crime como doloso, talvez qualificado, e desaconselharia a aplicação da pena máxima - que, repetindo, no Código Penal brasileiro limita-se a seis anos. Impossível que os tecnocratas da Justiça argentina não tenham considerado essa hipótese ou 'parado pra pensar' diante do relato da psicóloga.