Crítica
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Sinopse
Num futuro não muito distante, os humanos vivem numa realidade em que a dor praticamente inexiste. Alguns artistas performáticos utilizam órgãos novos e mudanças físicas para transformar essa busca pela dor em arte.
Crítica
Há muito que David Cronenberg vem tratando com particular interesse as complexidades do corpo. E em alguns filmes ele propõe discussões sobre as relações futuras que as pessoas poderão ter com as próprias carcaças. Isso, sobretudo, tendo em vista certas lógicas que podem expandir a experiência humana para além do aspecto físico. Como em eXistenz (1999), em que a virtualidade é utilizada como um motor para a reflexão sobre este transcender a carne. O cineasta canadense também gosta de excitar debates sobre o prazer, principalmente acerca da busca por ele em lugares, objetos e situações nada ortodoxos. Vide Crash: Estranhos Prazeres (1996), em que as pulsões de vida e morte se irmanam tendo em vista a obtenção do êxtase. Crimes os The Future marca uma espécie de retorno de Cronenberg à sua essência como cineasta. A trama acontece numa realidade diferente da nossa, um futuro sombrio e distópico em que a dor praticamente desapareceu. Nesse curioso e nem sempre admirável mundo novo, as pessoas quase não transam e tentam reencontrar o prazer exatamente na busca pela dor perdida. Mas, esse “retorno” de Cronenberg não é perceptível apenas na esfera temática. Em vários momentos, seu mais recente filme parece a obra de um iniciante tateando novas possibilidades. Então, há o paradoxo: o criador se reveste de novato curioso diante do mundo que ele conhece.
Esteticamente, Crimes os The Future se parece com uma obra de horror. O artista performático Saul Tesser (Viggo Mortensen) se desloca à noite pela cidade decrépita como um vampiro se protegendo dos raios solares. Pelo menos em dois momentos, Cronenberg observa a residência macabra desse homem com a mesma pegada descritiva de suspense que os mestres do horror utilizam para encarar castelos assombrados por forças malignas. Porém, não existe espaço para o sobrenatural nessa jornada em que as cirurgias passaram a ser espetáculos conceituais que tornam renomadas as personalidades evisceradas ao vivo. Deus está morto na realidade em que o mais importante é descobrir se há limites na relação do humano com as características que o definem como humano. Se alguém, por exemplo, é modificado cirurgicamente e passa a ostentar dezenas de orelhas pelo corpo, continua humano? Um menino que nasce com a capacidade de digerir plástico seria menos humano por conta do aspecto hereditário que aponta a uma possível modificação genética? Evolução? Essas perguntas perpassam todo o filme e acabam sendo o seu principal motivo de existir. A única coisa que entra em descompasso nessa empreitada visualmente gráfica é a pobreza da estratégia expositiva. Principalmente na primeira metade do filme, são recorrentes as cenas de gente tendo as suas curiosidades sanadas verbalmente.
Chega um ponto em que fica um pouco cansativo acompanhar alguém sendo contextualizado, supostamente, para não nos perdermos nesse emaranhado de novidades. No entanto, mesmo quando flerta abertamente com um didatismo pouco associado ao seu cinema – mas muito recorrente no cinema dos últimos anos – David Cronenberg continua perseguindo as sensações por meio de uma curiosidade científica e filosófica compartilhada conosco cinematograficamente. Viggo Mortensen está ótimo na pele do Drácula performático que precisa dormir numa cama com características orgânicas e ser alimentado numa cadeira sintética que parece ter saído de um pesadelo excruciante. E o citado ímpeto iniciante do experiente Cronenberg surge em sequências que funcionam mais pelo impacto referencial do que necessariamente como peças de um quebra-cabeças. As interações com o detetive vivido por Welket Bungué seriam quase completamente desimportantes se não fosse a aura de reverência a outros filmes que também utilizaram a dinâmica informante-policial para revelar as camadas obscuras da sociedade decadente em que ambos vivem. Tanto que os encontros deles acontecem sempre em lugares escuros e em circunstâncias que acentuam a natureza clandestina desse vínculo de ocasião. Cronenberg não parece obcecado por tecer uma teia, mas pelo brilho de cada um de seus fios.
Visualmente, Crimes os The Future pode ser repugnante para alguns olhares sensíveis, afinal de contas a câmera não se desvia das autópsias, de crianças agredidas e tampouco das performances bizarras envolvendo a retirada erotizada de tumores. Aliás, o infanticídio que inaugura o filme é um cartão de visitas e tanto sobre o que aguardar. Voltando ao seu calcanhar de Aquiles, o modo expositivo se excede novamente na interpretação reiterada dos quadros desse mundo em busca de prazer. Em diversos momentos, Cronenberg não deixa muito espaço para o espectador chegar às próprias conclusões, pois algum de seus personagens sempre está disposto a garantir as leituras a respeito daquilo tudo. Então, pode-se dizer que há um embate fundamental no mais novo filme de David Cronenberg entre a palavra e a imagem. Enquanto a imagem apela muitas vezes ao brutalismo, à repugnância e à força da alusão, a palavra frequentemente quebra esse mistério e entrega de bandeja as interpretações. E isso tira uma potência considerável do resultado. Se fosse menos elucidativo, ele poderia alcançar notas semelhantes àquelas o cinema de Cronenberg atingiu anteriormente. De toda forma, é instigante assistir a um verdadeiro mestre em atividade, exercendo a humildade e virtualmente voltando ao aprendizado num filme de produção menor e que lida com restrições de orçamento. O mundo que o canadense nos oferece é pouco convidativo, oxidado, horroroso e repleto de criaturas em busca de algo que as faça sentir vivas. É uma realidade em que arte e política passam inevitavelmente pela concepção que se tem dos corpos.
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