Sinopse
Em uma praça da cidade, vive uma jovem prostituta. Ela trabalha com clientes perigosos, e com outros que não lhe dão respeito. Entre relatos de violência, confessa a vontade de abandonar esta atividade.
Crítica
A protagonista deste curta-metragem demora a se desvendar. Inicialmente, podemos acreditar que os personagens principais são um pai e seus dois filhos adolescentes, levados a um bordel para terem suas primeiras relações sexuais com uma prostituta. O garoto mais novo está visivelmente constrangido com a situação. Quando a câmera se concentra em seu rosto, a prostituta se dedica ao sexo oral fora de quadro. Num corte, percebemos que o pai e o irmão observam a cena através de uma fresta na janela – quando o momento íntimo se transforma num espetáculo voyeurista, e um tanto violento. Em seguida, descobrimos que a profissional encontrou um ângulo perfeito para simular a conquista do garoto diante dos olhos do pai. O voyeurismo, então, se torna ficção, dirigida pela prostituta. Uma única cena, em questão de poucos minutos, adquire múltiplos significados.
Então, a família é abandonada. Descobrimos que a protagonista daquele ato constitui de fato o fio condutor de Crua. Esta é a riqueza do filme que jamais para de se reinventar diante dos nossos olhos. O diretor Diego Lima conta sua história sobre opressões silenciosas através de ferramentas de linguagem, muito mais do que pelo roteiro: o mesmo texto sucinto poderia dar origem a um resultado menos expressivo, se não fossem pelas escolhas precisas de ritmo, enquadramento e montagem. A narrativa sobre o desaparecimento de uma prostituta é transmitida ao espectador apenas pela expressão estoica da protagonista, em primeiro plano, enquanto pernas de mulheres em seus saltos altos se misturam ao fundo, e uma voz masculina lança perguntas sobre a garota desaparecida. Por que ninguém pergunta à nossa heroína, que está sentada logo ao lado, sobre o destino da pessoa procurada? Seria ela a mulher procurada? Seria ela ignorada pelas demais? A história guarda seus mistérios, relacionados à invisibilidade das garotas de programa.
Um dos aspectos mais interessantes do projeto se encontra na transmissão da masculinidade e do erotismo enquanto questões de mise en scène. O jovem garoto do começo é obrigado a fazer sexo para se provar homem, e a protagonista cria situações que convenham aos desejos alheios. Nestes rápidos relacionamentos, não existe entrega nem leveza: trata-se de performance, ao invés de prazer. Este é um filme sobre sexo, porém sem amor. Nas poucas vezes em que se expressa, a protagonista confessa a vontade de abandonar a vida noturna pela praça da cidade. Depois disso, se cala e, com uma expressão resignada, atravessa os dias de trabalho. Lima passa a transformar o corpo, de instrumento de gozo a um pedaço de carne, literalmente, até se tornar um mistério, um crime – o corpo suspeito de levar drogas para dentro da prisão.
Pode-se apontar que as cenas noturnas, mergulhadas na escuridão da praça, se tornam escuras demais, a ponto de perder os rostos e silhuetas dos coadjuvantes, e mesmo da protagonista – ou seria apenas deficiências na qualidade da projeção? De qualquer modo, Crua encontra uma excelente saída para sua protagonista – uma fuga metafórica, um truque, ou ainda uma questão de mise en scène, é claro, como tudo o que ela vinha fazendo até então. Esta mulher sem nome, de rosto forte e gestos seguros, será vista pela última vez atrás de capas de filmes. Belo fim tragicômico para uma figura que, de tão invisível, de fato desaparece. Este pode ser seu fim, ou seu recomeço, como sempre desejava, o que desperta uma relação ambígua a respeito do desfecho. Assim, desenvolvendo-se sem se explicar, o cineasta constrói um projeto fascinante, inteligentíssimo no uso de linguagem e muito complexo no tratamento de personagens.
Filme visto na 6ª Mostra de Cinema de Gostoso, em novembro de 2019.
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Eu adorei este curta. O rapaz demonstra talento e promete algo magnífico pro futuro. Sabe enquadrar, sabe mise-en-scenar de maneira original e certeira.