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Sinopse

Estella é uma jovem criativa e determinada a marcar seu nome no mundo da moda. Vivendo na efervescente Londres dos anos 1970, ela faz amizade com dois jovens ladrões e adiante é descoberta por uma lenda fashion. Mas, vários eventos fazem com que Estella abrace seu lado rebelde e vire Cruella de Vil.

Crítica

A maldade ocupa um espaço ambíguo dentro das produções familiares da Disney. A empresa construiu seu império a partir da adaptação de fábulas internacionais em versão atenuada – as histórias originais de Chapeuzinho Vermelho, Bela Adormecida, Pequena Sereia, Cinderela e outras continham quantidade impressionante de sangue, estupro e profanação de cadáveres. No entanto, apesar da moderação no valor do choque dessas cautionary tales (narrativas de precaução, destinadas a ensinar as crianças sobre os perigos da sociedade), era preciso sustentar a figura de um vilão. Afinal, a idealização da bondade depende da comparação com seu oposto imediato – quanto mais cruéis fossem os inimigos, mais bondosos (ou ingênuos, puros, martirizados) seriam os heróis e heroínas. A Disney sempre acreditou na purificação pelo sofrimento, percebida tanto na quantidade expressiva de protagonistas órfãos quanto na repetição de heroínas sequestradas (A Bela e a Fera, 1991, Rapunzel, 2010), amaldiçoadas (A Bela Adormecida, 1959), envenenadas (Branca de Neve, 1927), escravizadas (Cinderela, 1950) e emudecidas (A Pequena Sereia, 1989). O final feliz coroa a crença na resiliência: após ser maltratado inúmeras vezes, você será recompensado com uma mansão e um príncipe atraente.

Ora, os novos tempos toleram cada vez menos a opção da vingança enquanto forma de justiça. Embora fosse aceitável jogar o adversário do alto de uma torre, para sofrer uma morte horrível em A Bela e a Fera, o vilão de Toy Story 3 (2010) terminava preso (literalmente) a uma vida entediante. Segundo sociólogos como Marcel Gauchet, vivemos hoje a época de menor aceitação da violência. Na Idade Média, queimava-se pessoas vivas e esfaqueava-se oponentes sem medo de represália. Hoje, episódios de maus-tratos com animais provocam revolta, e casos de tortura são denunciados em cortes internacionais – exceto por presidentes que ainda defendem a tortura, mas esta é outra história. A nova configuração social se reflete na trajetória dos vilões, quando promovidos a protagonistas pela produtora. Na pele de Angelina Jolie, Malévola (2014) estava longe de uma figura perversa. A personagem se tornou a vítima de um amor desfeito e de uma castração simbólica (o corte das asas) que teriam motivado sua amargura. Em 2021, Cruella recebe um tratamento semelhante: a psicopata deixa de maltratar cachorros, e jamais pensaria em provocar qualquer morte. A vilã se converte numa enésima figura órfã, abandonada pelo sistema, rebelando-se contra poderosos que provocaram a ruína de sua família. Em outras palavras, ela recebe tratamento equivalente àquele das heroínas: a redenção pela dor.

Interpretada por Emma Stone durante a juventude e fase adulta, e Tipper Seifert-Cleveland na infância, a protagonista é descrita como rebelde, criativa, propensa às atividades artísticas e vítima de bullying desde o nascimento – o cabelo bicolor seria um traço natural. Por isso, ela se converte numa adolescente punk, avessa ao sistema, capaz de transformar a asséptica vitrine de uma loja de roupas numa composição moderna, cheia de pichações e mensagens provocadoras. Cruella assume a roupagem da artista incompreendida, à frente do seu tempo, e por isso pobre, explorada, praticando roubos por necessidade e por senso de enfrentamento a uma estrutura corrupta. A jovem desajeitada entra em rota de colisão com a Baronesa (Emma Thompson), cuja ausência de nome torna ainda mais explícita sua designação aristocrática. Pelo embate entre ambas – a anti-heroína convertida em mocinha, e a vilã contemporânea que despreza os trabalhadores – a Disney reprisa seu duelo favorito entre pobres e ricos, líderes autoproclamados e outros naturalmente escolhidos para esta função. A funcionária possui real talento para a construção de figurinos, ao contrário da chefe, acostumada a roubar os créditos de vestidos alheios.

O diretor Craig Gillespie assume o aspecto de fantasia tanto pelo uso de efeitos visuais quanto pela sucessão mágica de acontecimentos. Os famosos dálmatas se convertem em bichos digitais, frutos de um trabalho competente de efeitos visuais, porém ainda artificiais em aparência e movimentos. Duas importantes cenas no terraço da mansão transparecem o trabalho tão ostensivo de chroma key que parecem mergulhar a protagonista e a Baronesa em outro planeta, distante da cidade de Londres. Entretanto, as principais concessões ao naturalismo decorrem da facilidade com que Cruella organiza suas performances luxuosas no centro da cidade, sem ser rastreada, nem ter recursos financeiros para tal. Vestidos pegando fogo, paraquedas retirados sabe-se lá de onde e caminhões de lixo extremamente ágeis constituem outros gadgets lúdicos. Ao menos, o elenco age em consonância com esta construção: Emma Stone evoca as heroínas atrapalhadas das comédias tradicionais (do tipo que tropeça em público e diz as palavras erradas em momentos comprometedores), ao passo que Emma Thompson se diverte numa composição rebuscada da vilã invejosa, egocêntrica, mas também curiosa em relação à adversária. A semelhança com O Diabo Veste Prada (2006) se dissipa graças ao tom: enquanto a comédia de David Frankel romantizava os abusos de um ambiente de trabalho opressor, Gillespie nunca deixa de observar o império da Baronesa pelo prisma da farsa assumida.

Sempre que se aproxima do aspecto humano, o resultado cresce bastante. A cena em que a jovem estilista percebe sua sina, retratada num inesperado plano-sequência enquadrando exclusivamente o rosto de Emma Stone, munida de um monólogo espinhoso, extrai o melhor da atriz, além de conferir à aventura um aspecto melancólico. A interação com os comparsas Jasper (Joel Fry) e Horace (Paul Walter Hauser) rende boas sequências, embora ambos pudessem ser aproveitados de modo mais eficaz pelo roteiro. O filme evita fornecer interesses românticos às duas fortes mulheres, além de inserir identidades LGBT de modo natural à trama. Esta é provavelmente a melhor concessão do projeto à contemporaneidade: o abandono do amor romântico enquanto recompensa à protagonista sofredora, e o repúdio da vingança contra o inimigo, privilegiando a justiça constitucional. De resto, qualquer maldade da estilista é abrandada ao limite da inexistência. Cruella se converte numa mulher arrogante, que trata os amigos de modo autoritário, sendo no entanto desculpada por sua origem traumática, e desculpando-se a si própria adiante. A Disney tem se apropriado de figuras vilanescas apenas para redimi-las a convertê-las em novos heróis. Caso Úrsula, Jafar ou Scar venham a ganhar suas histórias autônomas de origem, certamente se transformarão em novas vítimas da sociedade.

Por um lado, através desta escolha, ganha-se em humanismo, ao apostar no aspecto possivelmente reparável de qualquer pessoa. Por outro lado, os cautionary tales deixam de trazer precauções aos pequenos, perdendo seu intuito original. Nestas aventuras familiares repaginadas, cuida-se para que que os elementos de ação estejam presentes (as perseguições, o fogo), assim como o antagonismo entre figuras simetricamente opostas. No entanto, retira-se o aprendizado pelo medo, comum às histórias medievais. Agora, redime-se pelo amor, pela tolerância, pelo pedido de desculpas. Os contos morais adquirem um caráter reformador: embora possuam trilha pop, figurinos grunge e outros recursos típicos da nossa época, sustentam uma visão indulgente de natureza cristã. No entanto, lido pela perspectiva da parábola religiosa, o filme se aproxima muito mais do cristianismo tolerante do Novo Testamento, do que dos ensinamentos sangrentos e punitivos do Antigo Testamento. No discurso do século XXI, descobre-se que não existe nenhum vilão de fato, apenas uma pessoa incompreendida, esperando para ser transformada. As fábulas de caráter social se convertem em aprendizados psicológicos.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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