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Crítica


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Sinopse

Depois de passar anos estudando a respeito dos campos de concentração cearenses que foram responsáveis pelo flagelo de milhares pessoas após a seca de 1932, um homem embarca em uma jornada pelos sertões em busca de respostas sobre alguns mistérios que permanecem no passado.

Crítica

Boa parte das pessoas associa a expressão “Campos de Concentração” diretamente ao período marcado pelo nazismo, no qual os espaços onde judeus eram confinados e posteriormente exterminados viraram sintoma de barbárie. A ligação quase automática se dá porque existe um debate público sobre tal circunstância histórica, aprende-se sobre essa desumanidade na escola, ou seja, fala-se abertamente sobre isso. Portanto, não é de estranhar (mas a lamentar muito) que poucos conheçam os causos que permeiam a existência dos equivalentes cearenses às prisões cercadas de arame farpado chefiadas pelos membros do Terceiro Reich. Currais tem como objetivo escavar episódios dolorosos, obscurecidos propositalmente em virtude da culpa crassa das elites envolvidas num projeto segregacionista de higienização por meio da erradicação que sobrevinha à exploração dos desvalidos. Em 1932, durante uma das mais brutais secas do sertão nordestino, o êxodo enorme de populações inteiras acossadas pela pobreza extrema foi direcionado por várias promessas de vida melhor e emprego abundante. Todavia, a frustração dessas expectativas coincidiu com práticas desumanas, análogas à escravidão, num cenário de clausura forçada determinado pela miserabilidade e a mortandade em massa.

Um dos pontos que mais chama a atenção desde o começo em Currais é a presença do ator Rômulo Braga interpretando aquele que segue os rumos da história apagada. Aliás, aos interessados em fronteiras, o filme é um prato cheio, pois ele alterna constante e habilmente dinâmicas que dizem respeito pura e simplesmente ao documentário e elementos essenciais mais comumente associados à ficção. Em busca de uma imagem que possa sintetizar poeticamente essa operação cinematográfica complexa levada a cabo pelos diretores David Aguiar e Sabina Colares, poderíamos dizer que o protagonista percorre os trilhos dos fatos, daquilo que verdadeiramente aconteceu, a bordo de uma locomotiva inventada. Mesmo ao conversar com moradores das regiões percorridas em busca de relatos esclarecedores, há a sobressalência de uma dinâmica facilmente associada à ficção, com composições de quadro bastante elaboradas – méritos da belíssima fotografia de Petrus Cariry – e uma forma de encarar as pessoas partindo de preconcepções estéticas. Assim sendo, a dominante simbólica prevalece sobre o flagrante. E isso é compreensível, até mesmo porque, via de regra, boa parte dos depoimentos é oral, portanto, até os fragmentos supostamente verazes contém suas invenções.

Currais também opera dentro da lógica do filme de estrada, com Rômulo Braga transitando por paisagens poeirentas do Ceará à procura de respostas acerca do passado do avô de seu personagem. Há alternância entre as conversas reveladoras com gente que retém frações do todo enterrado e pequenos excertos em que a ele é dada a oportunidade de ser entendido solitariamente em comunhão com uma geografia aparentemente pacata. Mas, esta guarda lastros de uma série de violências perpetradas contra populações vulneráveis. David Aguiar e Sabina Colares utilizam com parcimônia e sensibilidade os valiosos materiais de arquivo, entremeando-os nesse jogo de cena instigante e consistente. Fotografias de crianças vitimadas por toda sorte de problemas de saúde, vislumbres de campos de concentração apinhados de gente humilde enganada por promessas vazias, enfim, estilhaços de circunstâncias que devem ser resgatadas agora do limbo. Num instante pontual, o protagonista diz a um interlocutor que se pergunta constantemente a respeito do peso dessas nódoas jogadas para debaixo do tapete à constituição do tecido social da nossa contemporaneidade. O silêncio oferecido como resposta é parte a impossibilidade de condensar algo tão intrincado de pronto, parte encenação em prática.

Com a entrada de novos personagens superficialmente ficcionais em Currais, o filme ganha em informação. A figura vivida por Zezita Matos é uma colecionadora de reminiscências, alguém que atua no sentido contrário da oficialidade preocupada com o asseio histórico da região que, assim como várias do Brasil, prefere mutilar o curso da própria existência em prol do esquecimento de suas vergonhas. Ao espectador desavisado, por exemplo, não ciente de que Rômulo Braga é ator desempenhando um papel, talvez a proposta possa soar pura e estritamente documental. Contudo, há fortes indícios de que David Aguiar e Sabina Colares não se contentam com uma possibilidade, promovendo diálogo fértil para tornar o itinerário de investigação robustecido pelas possibilidades da fabulação. Muito distantes da lógica “ou um ou outro”, eles estabelecem interpenetrações essenciais, borrando divisas, criando espaços híbridos, apostando em variáveis de confusão aos empenhados em separações e classificações. Também é preciso ressaltar o lirismo que a câmera busca extrair dos esqueletos arquitetônicos ainda teimosamente de pé, dessas edificações encaradas como indícios do tempo repleto de agruras, cujas ressonâncias são como as ondas provocadas ao se jogar pedras num rio.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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