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Crítica


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Sinopse

Três entregadores de apps arriscam as suas vidas para ganhar dinheiro em meio à pandemia da COVID-19.

Crítica

Motoboys e motogirls têm sido utilizados frequentemente como símbolos da chamada era da uberização do trabalho, situação marcada pela isenção das corporações quanto aos deveres com seus prestadores de serviço – a camuflagem da precarização vem pelo discurso eufemista “seja o seu próprio patrão”. Esse tipo de relação laboral tem nos homens e nas mulheres sobre duas rodas a sua imagem mais dramática. Desprotegidos no trânsito, a mercê de chuvas e outras intempéries, esses operários foram fundamentais durante a pandemia da COVID-19, uma das maiores crises sanitárias globais dos últimos séculos. Sem eles, aumentaria o volume de pessoas circulando e, assim, haveria o descumprimento em larga escala do protocolo do distanciamento social. Esta medida visava evitar a proliferação do vírus que se provou mais letal do que o então presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, fazia parecer em suas irresponsáveis aparições públicas. Da Porta pra Fora acompanha três desses trabalhadores pelas ruas de Brasília no período caótico. Keliane enfrenta a dureza da situação enquanto alimenta o sonho de ser cantora profissional; Alessandro, também conhecido como Sorriso, segue na mesma luta e ainda encabeça o movimento de motoboys descontentes com as condições impostas à classe vulnerável; por fim, Marcos é a figura mais controversa do documentário, pois é negacionista e, claro, bolsonarista.

Da Porta pra Fora tenta capturar a urgência das ruas em meio aos depoimentos desses três protagonistas incumbidos de registrar os seus cotidianos. Keliane, Alessandro e Marcos utilizam dispositivos móveis para oferecer ao filme perspectivas menos controladas por uma visão externa – ainda que o controle do olhar da direção se imponha pela escola do que aproveitar desses materiais. Então, temos depoimentos tradicionais, fruto das provocações do diretor Thiago Foresti (que nunca aparece em cena), mesclados com vislumbres da rotina recortada pelos próprios protagonistas. Em busca da construção de um painel muito amplo, repleto de assuntos e controvérsias, o realizador acaba sobrecarregando o filme. Passa-se sem cerimônia de um tema a outro sem o desenvolvimento e/ou aprofundamento de qualquer um deles. Numa hora a abordagem é orientada pela necessidade de compreender a precarização da classe; no outro, imediatamente posterior, as questões de ordem familiar/pessoal de algum dos personagens ameaçam se impor; mais à frente, o ambiente político de um país convulsionado pela polarização também reivindica um espaço generoso. O roteiro não consegue costurar seus muitos tópicos, vieses e camadas sem cair numa banalização pela pressa. Nem bem uma coisa foi apresentada, outra a atropela e a relativiza. O resultado é uma experiência dispersa e vaga.

Pensando nos protagonistas, Keliane é a que mais evidentemente constrói um corpo cênico para performar às câmeras. Isso não significa que ela mente/falseia algo, mas é possível perceber essa construção involuntária na sutil empostação de sua voz e nas pequenas hesitações entre as palavras (sinal de escolha dos vocábulos de acordo com a imagem a ser passada). Já Alessandro é o personagem mais combativo, aquele que coloca as demandas da classe sempre à frente. Ele assume a representação da consciência de classe que tenta arregimentar colegas em torno da indignação pela falta de apoio de grandes empresas que os precarizam cada vez mais. Por fim, Marcos é visto em vários momentos fazendo pouco da doença, afirmando o seu apoio incondicional às medidas (quais, mesmo?) tomadas por Jair Bolsonaro durante a pandemia que vitimou fatalmente mais de 700 mil mortes por complicações decorrentes da Covid-19. É exatamente no trato com ele que está o posicionamento questionável de Da Porta Pra Fora. Evidentemente está sendo construída uma curva dramática que leva da negação ao sofrimento pelos efeitos dessa cegueira (o pai doente, o choro desesperado e o pedido à utilização das máscaras). Fazer isso sem observar os poderes que o tornam vulnerável ao discurso extremista não é incorrer numa relação simplória de causa e efeito que acaba expondo o homem humilde?

Exibido no 51º Festival de Cinema de Gramado (2023), dentro da competição de exemplares de longa-metragem, Da Porta pra Fora chega às telonas quase como um documento atrasado, levando em consideração que os chamados “filmes de pandemia” fizeram mais sentido no calor do momento e/ou no instante imediatamente posterior ao enfraquecimento da doença por força da aplicação das vacinas. De toda forma, o grande problema da realização assinada por Thiago Foresti é a tentativa de abraçar diversos assuntos sem tempo suficiente para desenvolvê-los. Filme sobre as agruras durante a dramática pandemia da COVID-19; retrato da precarização de uma classe cotidianamente vítima de chantagens corporativas – como as oscilações de preços sem regulação, ao bel prazer de empregadores que detém o poder da cadeia; testemunho do dia a dia difícil de pessoas submetidas a condições desumanas; crítica ao governo federal que não soube (ou não quis?) enfrentar a crise da maneira como pedia a gravidade da situação; documentário sobre dificuldades para mobilizar proletários em torno da reivindicação dos seus direitos. A agudeza é diluída pelo excesso, a urgência não é enfatizada pela imagem ou pelo encadeamento dos assuntos e o resultado é apenas indicativo de várias coisas. Encarar tópicos importantes e ter posicionamentos humanistas não são suficientes para se ter um grande filme.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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