Crítica
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Sinopse
Em Daaaaaalí!, uma jornalista francesa encontra o icônico artista surrealista espanhol Salvador Dalí em várias ocasiões. Ela quer realizar um documentário, que se revela bem difícil e cheia de surpresas, principalmente devido às extravagâncias do renomado pintor. Exibido no Festival de Veneza 2023.
Crítica
Pode parecer uma coisa banal, mas o número de letras “a” no título é importante. Ele diz respeito à quantidade de atores que interpretam o artista surrealista Salvador Dalí nesse filme que pode ser considerado o retrato despirocado da extravagância de um homem excepcional. Dali é vivido na trama por Edouard Baer, Jonathan Cohen, Gilles Lellouche, Pio Marmaï, Didier Flamand e Boris Gillot. Seriam ainda mais intérpretes, porém Alain Chabat e Pierre Niney deixaram a produção por acharem que não estavam adicionando muita coisa ao protagonista. Já o diretor é Quentin Dupieux que, a despeito de seus 50 anos de idade, parece ser atualmente o enfant terrible do cinema francês. Tanto que foi dele a honra de abrir o Festival de Cannes 2024 e atualmente figura no Festival Varilux de Cinema Francês 2024 com dois filmes. E é até difícil determinar a que modelos narrativos pertence Daaaaaalí!. Em parte, um meta-filme que fala da produção de um documentário sobre Salvador Dalí. Em outra, a reprodução dos delírios de um artista ímpar numa dinâmica feita de mergulhos sucessivos em camadas narrativas inseridas umas nas outras. Numa cena testemunhamos a chegada de Dalí para encontrar Judith (Anaïs Demoustier), a jornalista que pretende entrevistar o ícone. Depois percebemos que estávamos vendo o filme sugerido por Dalí como alternativa à matéria escrita em papel. Como se encontrar?
A questão é: será que realmente precisamos “nos encontrar”? Diante de um filme, muitas vezes ficamos incomodamos pela dificuldade para colocar tudo dentro da caixinha da racionalidade. A trama, os personagens, as situações, os desdobramentos e os mistérios, tudo precisaria fazer sentido, senão os cineastas correm o risco de frustrar o público. No entanto, como há diversas técnicas e abordagens na literatura, na música, nas artes plásticas e na arquitetura, por exemplo, o cinema comporta tanto as propostas de cunhos mais ou menos convencionais quanto as muito desalinhadas dos parâmetros industriais. Daaaaaalí! é quase inclassificável (senão como comédia escrachada) porque toma diversos caminhos ao longo de seus pouco mais de 70 minutos. O princípio da trama é a extravagância da personalidade de Dalí. Independentemente do ator que empresta o seu corpo ao personagem, ele tem a mesma entonação de voz (condizente com a caricatura concebida para essa representação). Dalí é capaz de largar seus interlocutores falando sozinhos se alguma coisa, por menor que seja, o desagradar. Ele também reivindica a esquisitice como uma maneira de se diferenciar num mundo careta – a normalidade é representada pela jornalista de Anaïs Demoustier. O que Quentin Dupieux nos propõe é um instigante jogo de gato e rato, nem tanto uma investigação do personagem ou da sua relevância.
Daaaaaalí! é uma comédia com ecos do grupo britânico Monty Python, algo que fica claro na cena de Dalí caminhando por um corredor interminável – enquanto ele ainda está vindo, as personagens que o esperam têm tempo de ir ao banheiro, de pedir a água com gás que satisfaz a celebridade, de confabular sobre a melhor estratégia de abordagem, entre outras coisas. E esse humor escancarado está também a serviço da imagem de um artista narcisista que exerce a sua influência de maneira superlativa. Essa personalidade é tão deformada por coisas como a empáfia e o orgulho que rapidamente surge a noção de ridículo. Talvez, se o filme tivesse uma pegada mais séria, Dalí logo se tornaria um personagem insuportável do qual o espectador facilmente sentiria aversão. No entanto, Quentin Dupieux faz dele o bobo da corte que autocelebra demais a sua genialidade como fator de distinção social. Ao deixá-lo tão vulnerável, o cineasta sublinha fragilidades e o torna uma figura simpática. A utilização de vários atores para interpretar o mesmo personagem é um dispositivo em contradição com a composição muito semelhante de todos os homens escolhidos para essa missão. O paradoxo também é um ponto interessante nesse filme absolutamente singular. Se era para todos os intérpretes escolherem a mesma entonação e os trejeitos semelhantes, porque escalar tantos? A resposta é: porque não?
Grande brincadeira em torno da figura célebre de Salvador Dalí, Daaaaaalí! propõe ao espectador se perder num labirinto ou se deixar levar para o centro de um redemoinho. Um dos seus melhores momentos é quando um padre conta o sonho envolvendo um cowboy atirador, carros de luxo e outros elementos oníricos que não caberiam na realidade. Novamente fazendo uso de um expediente muito caro às comédias (o absurdo), Quentin Dupieux não se contenta com a ilustração do sonho, pois vai mostrando sucessivamente que: a “realidade” também faz parte do sonho; existe o sonho dentro do sonho e o sonho dentro do filme; o filme retratando o sonho; e, finalmente, o sonho contendo o filme que registra cinematograficamente os devaneios do artista vivendo...entre sonho e filme. Ficou confuso, né? Pois é exatamente essa sensação de perdição que o longa nos provoca conscientemente, assim obrigando o espectador a se livrar das amarras da compreensão racional e se deixar perder para aproveitar tiradas engraçadas. As cenas envolvendo o produtor interpretado por Romain Duris são menos importantes, sobretudo porque não acrescentam nada de muito relevante a essa caricatura do artista genial e tampouco à ideia do cinema como ferramenta ideal para capturar os delírios de um surrealista como Dalí. De esquete em esquete, Dupieux não mostra “o” Dalí, mas o seu Dalí, essa figura tresloucada.
Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês em novembro de 2024.
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