Crítica
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Sinopse
Forte e independente, a prostituta Esmeralda mora num cortiço paulistano, cercada de personagens que experienciam a miserabilidade diariamente. Nesse cenário, a proprietária decide transformar algumas habitações em espaços de prostituição.
Crítica
O catarinense Ody Fraga foi um dos nomes mais prolíficos da Boca do Lixo, tendo acumulado até sua morte, em 1987, mais de 60 títulos no currículo entre as funções de roteirista e diretor. Ao longo da carreira, Fraga se alternou entre produções derivativas para consumo rápido e outras de propostas um pouco mais ambiciosas, como é o caso deste A Dama da Zona. Apesar de possuir todos os elementos clássicos das pornochanchadas, o longa produzido por Cláudio Cunha apresenta um acabamento artístico acima da média e, ao mesmo tempo em que transborda um grande apelo popular, consegue também se destacar como um fiel e contundente retrato sociocultural do Brasil do final da década de 70.
A trama acompanha a “Dama” do título – que busca claramente capitalizar sobre o sucesso de A Dama do Lotação (1978) – a bela prostituta Esmeralda (Marlene Silva), que vive em um cortiço no tradicional bairro paulistano do Bixiga. A ambientação por si já é um achado, com uma longa escada ligando a rua ao pátio rodeado por antigos casarões decadentes cujos cômodos se tornaram moradia para dezenas de famílias. Essa localização geográfica, abaixo do nível dos carros e pedestres, já reflete bem o posicionamento social de seus moradores, integrantes da classe baixa. Dentro desse microuniverso particular, a câmera do diretor de fotografia Carlos Reichenbach passeia com elegância, registrando com exímio apuro estético o cotidiano das figuras que ali habitam.
Figuras essas que beiram a caricatura, como o português dono da mercearia - que nutre uma atração não correspondida por Esmeralda – e sua ciumenta esposa ou o malandro Dodô (Hélio Porto) que se divide entre aplicar pequenos golpes – como arrecadar dinheiro dos vizinhos para uma viagem à praia que nunca ocorre – e uma empreitada como cafetão. São estereótipos calcados em um humor politicamente incorreto comum à época – vide o caso do sapateiro Calu (o comediante Canarinho), que paga as crianças da vila para lhe avisarem quando alguma mulher está tomando banho no chuveiro coletivo da vizinhança – mas que ainda assim, por sua fácil identificação no imaginário coletivo, carregam uma veracidade que chega a ecoar o neorrealismo italiano.
Essa relação com o movimento liderado por Visconti e Rossellini se dá pela proximidade com os marginalizados, que buscam driblar a desesperança através de pequenas alegrias, e é reforçada pelos detalhes relacionados ao Bixiga – bairro tipicamente italiano – como a dupla que vaga entre as casas entoando óperas. Fraga utiliza todos esses ingredientes para criar um clima íntimo de comunidade entre os personagens que, por mais que tenham atitudes questionáveis, são tratados com visível afeto. Um sentimento que acaba sendo compartilhado pelos espectadores. Mesmo com suas limitações, todos os tipos apresentados possuem seu encanto e força, especialmente Esmeralda, que transcende a mera representação da mulata sensual para se mostrar uma mulher segura e independente, cheia de frases de efeito, que ganha corpo e alma na deliciosa atuação de Marlene Silva.
Outro destaque é Hélio Porto, divertidíssimo como Dodô, que possui diálogos afiados – em determinada cena, quando uma das prostitutas lhe acaricia e diz que isso a acalma, ele retruca “Ótimo, trata de faturar bastante ‘calmante’ hoje”. O sexo permeia todo o longa, mas além das óbvias razões comerciais, possui clara função dramática. Está no sexo a representação da possibilidade de uma nova vida, da sobrevivência. Algo explicitado na personagem Juliana (Marlene França), esposa de um bêbado desempregado que se entrega ao meretrício. A questão sexual no próprio cinema nacional é trabalhada em viés satírico: “Tá achando que é atriz de pornochanchada?”, dispara Esmeralda ao analisar o caminhar de uma garota de programa novata. E há ainda os personagens de dois cineastas, jovens “intelectuais”, que buscam registrar a realidade nua e crua do cortiço, mas acabam convencidos por Dodô a rodar um filme pornográfico.
Em meio à comédia escrachada – a sequência de Calu incorporando o caboclo Guarani no terreiro de macumba é ótima - o cineasta ainda é capaz de criar momentos realmente poéticos – a cena do funeral do bebê, em que Esmeralda distribui camisinhas para que todos as encham como se fossem bexigas, possui uma beleza quase surrealista. É bem verdade que por vezes o longa esbarra em um humor mais rasteiro ou ainda verbaliza desnecessariamente algumas piadas já implícitas, como a do bandeirante – o português chamado Fernão Dias atrás de Esmeralda. Os flashbacks de cenas já vistas poderiam ser evitados e a construção da dramaticidade é falha em determinados momentos, como o da morte do bebê.
Mesmo com essas irregularidades, Fraga mantém vivo o espírito de comunhão, tendo nos bailes de gafieira um espaço para a fuga e para o encontro, um símbolo de união na luta contra as ameaças à subsistência do grupo – o risco de despejo, a miséria. É no salão de dança que felicidade e tragédia ensaiam seus passos nos momentos-chave da trama, levando ao desfecho tomado por uma melancolia de aura felliniana – com ares de Noites de Cabíria (1957) – quando todos voltam na manhã seguinte ao baile e encontram seus pertences jogados pelas escadarias. Nesse instante, em que Dodô se recorda da proposta feita à proprietária do imóvel para se tornar sua sócia e transformar o local em um prostíbulo, Fraga recorda ao público que a barreira da escalada social permanece intransponível para os personagens. “Eu acho que fiz uma cagada”, conclui o pseudocafetão numa frase antológica que sintetiza a ironia da obra.
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