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Crítica


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Sinopse

Um assassino em série começa a mirar prostitutas numa cidade italiana. Elas são mortas instantaneamente com um corte pescoço, mas Diana sobrevive. Embora consiga escapar, a jovem se torna cega. A partir deste momento, passa a ser perseguida pelo adversário que pretende silenciá-la.

Crítica

A presença de Dark Glasses (2021) numa sessão de gala do Festival de Berlim, sob o imponente selo da Wild Bunch, representa uma comprovação da vitória da política dos autores. Caso este mesmo filme fosse assinado por um cineasta estreante, seria impossível imaginá-lo num evento deste porte, tendo chamado a atenção de tais distribuidores. Ora, a pequena obra de terror é permitida pela assinatura prestigiosa de Dario Argento, um dos maiores mestres do terror, autor de obras-primas como Suspiria (1977). Ainda que suas produções recentes estejam muito aquém dos trabalhos elaborados em início de carreira, a comunidade audiovisual segue investindo em novas iniciativas, protegendo-as no intuito tão nostálgico quanto romântico de encontrar um filme à altura do terror de antigamente. Caso não encontrem, os criadores ainda terão oferecido “um novo Argento”, uma obra cult em sua essência, e de custos consideravelmente baixos, o que justifica os riscos. No entanto, uma crença fundamental do pensamento autoral cai por terra diante de casos como este. Trata-se da ideia de que todo filme constitui uma emanação direta do talento de seu criador, e sendo o talento uma característica atemporal, ele não envelheceria. Portanto, um bom cineasta efetuaria obras de qualidade sempre, até o fim de seus dias. Será interessante descobrir os exercícios de retórica empregados pela cinefilia para sustentar que o longa-metragem de 2021 estaria à altura daqueles de seus tempos áureos.

Isso porque a produção se sustenta a partir de um fiapo de roteiro, escrito pelo próprio Argento. O texto é tão fraco e amador que se prestaria a uma bela paródia de horror. Entretanto, o diretor se leva a sério na condução. Ele investe na saga de Diana (Ilenia Pastorelli), perseguida por um assassino em série que tem visado especificamente as prostitutas da região. As outras garotas morrem na hora, com cortes profundos no pescoço, porém Diana sobrevive. Como efeito colateral do acidente de carro, fica cega. O sujeito, simbolizado por um grande furgão branco, começa a persegui-la para apagar os traços da única mulher que escapou. Os acontecimentos possuem inúmeras passagens mal resolvidas em termos de coerência interna: Diana adapta-se com facilidade espantosa à cegueira; recebe de presente uma ajudante que bate à porta de casa, e dedica o resto de seus dias à protagonista; policiais experientes não têm a menor ideia de como abordar o motorista de um furgão parado; um cão-guia é deixado sem motivo em casa, quando a heroína precisaria dele; uma faca surge por milagre ao lado de pessoas amarradas com uma corda; uma barraquinha de óculos escuros aguarda convenientemente a personagem quando ela quebra os seus — sendo o único comércio disponível na região. Cada facilitador inserido na trama, destinado a ajudar a produção e a direção, implica num desprezo pela lógica e pela inteligência do espectador: os absurdos se sucedem, confusos em temporalidade, espaço e objetivos — ou seja, as matérias-primas básicas da linguagem cinematográfica.

A propósito de justificativas, Dark Glasses possui notável dificuldade em construir um percurso psicológico para explicar tanto o comportamento da protagonista quanto o ódio do perseguidor. Ela nunca efetua o luto da visão perdida, apenas veste os objetos do título e retoma o atendimento a clientes. A chegada de uma criança chinesa órfã, que precisará de cuidados enquanto cuidará dela, não provoca nenhuma emoção forte nesta mulher — que relações tinha com a maternidade, com a vida familiar? Já o vilão será movido por uma pequena motivação específica no caso de Diana, porém seus objetivos permanecem misteriosos quanto às demais mulheres. O projeto nem sequer pode ser considerado um filme policial, posto que os investigadores são deixados de lado, e não aparentam seguir nenhuma pista particular. A incapacidade de encontrar o veículo do adversário, disponível em frente a cada cena do crime, soa risível. (O que dizer da cena das serpentes, parcialmente plagiada de A Morte do Demônio, 1981?) Enquanto isso, cabe a duas figuras frágeis correrem desesperadas de um tipo malvado e bruto, sendo uma criança imigrante e uma mulher cega contra o tipo representado pelo veículo potente e o trabalho braçal. O discurso investe em arquétipos de força e fraqueza que, caso satirizados, renderiam um belo filme contemporâneo. Ora, Argento estima de fato que a pureza e a sentimentalidade compete às mulheres, enquanto a potência física (erótica e violenta) reside nos homens.

Seria tentador enxergar no resultado um prazer de antigamente, embalado no formato de um filme B. Alguns elementos apontam para esta interpretação: o símbolo hipnótico do eclipse na abertura, o plano subjetivo da boca que se aproxima da câmera (para efetuar um beijo, ou para o sexo oral), a ostensiva trilha sonora com aparência de clube noturno, a primeira morte sangrenta de uma prostituta. Os quinze minutos iniciais sustentam um prazer referencial, capaz de explicitar os cânones do gênero em possível via crítica, paródica ou nostálgica. Infelizmente, este caminho é abandonado com rapidez conforme a trama avança na mecânica simples da dupla correndo desesperada à direita e à esquerda, perseguida pelo macho branco cheirando a cachorros. Argento tem dificuldade de se encaixar numa produção dos nossos tempos, movida por discursos dos anos 2020. Ele tampouco investe numa homenagem ao slasher de antigamente, nem ao giallo com o qual contribuiu um dia. Asia Argento, também produtora, parece ser aquela que melhor compreende a ligação entre horror clássico e contemporâneo — como saberá mostrar pela intensidade da interpretação rumo ao final. As figuras restantes, reduzidas a tipos sociais (a prostituta, o garoto chinês, a amiga, o malvado, o policial), ficam indecisas entre atuarem num drama, num suspense policial de estrutura televisiva, e num terror herdeiro dos anos 1970 e 1980. O filme sustenta falhas conceituais e de roteiro que a realização jamais consegue esconder — o diretor Matteo Cocco hesita entre oferecer a elegância de uma produção profissional e polida, e as cores exageradas de um terror trash. O Argento contemporâneo busca a si próprio como cineasta, enquanto os produtores, atores e fãs buscam o Argento de Suspiria. O desencontro é total.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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