Sinopse
Kang mora sozinho em uma casa grande. Através da fachada de vidro, olha para as copas das árvores, açoitadas pelo vento e pela chuva. Sente uma dor estranha, que dificilmente suporta e que toma conta do corpo. Non mora em um pequeno apartamento em Bangkok, onde prepara metodicamente pratos tradicionais de sua aldeia natal.
Crítica
Os protagonistas de Dias estão conectados muito antes de se encontrarem de fato. Durante metade da narrativa, acompanhamos ora uma cena com Kang (Lee Kang-Sheng), homem que busca um tratamento para as dores nas costas, ora com Non (Anong Houngheuangsy), jovem vendedor e massagista. Num primeiro instante, Kang observa pacientemente a chuva fora de casa, sentado numa poltrona. Depois, Non corta legumes e prepara a alface para uma salada em sua casa. A montagem faz questão de aproximá-los, colocando ambas as trajetórias em paralelo, como se estivessem condicionados à presença alheia – a vida de um só avança quando a do outro também avança. A união silenciosa é oferecida apenas ao espectador, através de um pacto subentendido: sabemos que, eventualmente, os dois homens irão se reunir. Então, num corte abrupto da montagem, sem qualquer forma de apresentação ou preparação narrativa, eis os dois juntos num quarto de hotel: massagista e cliente.
Cada uma das cenas citadas – a preparação do jantar, a observação da chuva, a massagem, e ainda outras, como a noite de sono e as velas queimando – demoram longos minutos. Visto que os personagens estão sozinhos em suas casas, sem qualquer forma de laço social duradouro, eles não conversam. O diretor Tsai Ming-Liang fornece mais uma vez a experiência do tempo, ou ainda a provocação do cinema-espelho: nós, enquanto espectadores, observamos pessoas que a princípio “não fazem nada”, retirando do cinema seu caráter de espetáculo e de preciosidade. Sem qualquer comiseração nem enfeite da imagem (o diretor trabalha com luzes naturais, enquadramentos fixos, e ausência de trilha sonora extradiegética), somos convidados a contemplar pessoas que contemplam, percebendo em cada um destes momentos os traços fundamentais de suas personalidades. Seria fácil eles discorrerem sobre a solidão ou sobre os problemas financeiros. No entanto, basta ver os olhos marejados do primeiro, e a casa paupérrima do segundo, para se deduzir estas informações. Aos poucos compreendemos os estados de espírito, as nacionalidades, a maneira particular de demonstrar afeto. Assim, ao “não mostrar nada”, o cineasta mostra tudo.
O ritmo peculiar pode se revelar insuportável para os espectadores angustiados dos tempos de hoje. Na sessão de imprensa durante o Festival de Berlim, os jornalistas se levantavam e saíam às dezenas, alguns deles irritados. Os outros corriam para checar as suas mensagens nos telefones celulares sempre que uma cena se esticava um pouco mais do que de costume. Dias (2020) vai de encontro com a sociedade do imediatismo e com a nossa percepção do tempo enquanto produtividade – se eu não for entretido, se me entediar um pouco, estou “perdendo tempo”, logo preciso buscar outra fonte de prazer. Como sugere o belo e simples título, “Dias” se torna ao mesmo tempo uma medida temporal e uma dilatação imprecisa do tempo (Seriam muitos dias? Poucos dias?), o que implica a compreensão do tempo enquanto passagem e processo. Diante da contemporaneidade que reduz a taxa de concentração de adultos àquela das crianças, o filme se transforma num gesto político. Caso as imagens fossem vazias, sem interesse plástico nem narrativo, talvez o projeto se reduzisse a uma vaidade conceitual. No entanto, o diretor fornece planos cuidadosamente construídos, nos quais a duração se torna fundamental para provocar o efeito desejado – de cansaço, tédio, solidão – tanto nos personagens quanto no espectador.
Alguns críticos têm descrito Dias enquanto filme sem diálogos, o que não é verdade. “Este filme está intencionalmente sem legendas”, afirma o letreiro inicial, sinal de que: 1) Existem diálogos, ou frases compreensíveis que poderiam ter sido legendadas, 2) Elas não importam ao desenrolar da trama, ou seja, as interações podem ou ser deduzidas pelos gestos e pelo contexto, ou ainda não importam ao conflito, apenas à verossimilhança. Ao contrário de tantos filmes mudos que forçam seus personagens a se calarem mesmo quando visivelmente precisariam dizer algo (vide o recente De Quem É o Sutiã?, 2018), Tsai Ming-Liang compreende a importância de alguns monossílabos aqui e ali, assim como de alguns “Obrigado”, “Pode entrar”, “Aqui está”. Não há necessidade de traduzir estas pequenas falas, o que torna o filme ao mesmo tempo mais universal – porque pode viajar a qualquer país sem adaptações - e mais local – jamais teremos contato com qualquer outra língua além daquelas dos rapazes, de nacionalidades diferentes. De qualquer modo, o silêncio se justifica: visto que interagem com poucas pessoas, com quem falariam? Felizmente, nenhum deles conversa consigo mesmo para informar o espectador do que quer que seja: o cineasta preza demais pelo naturalismo para introduzir qualquer acessório do tipo.
Por estes recursos de linguagem, Dias já seria um filme interessante o suficiente, mas ele se torna ainda mais especial quando os afetos irrompem em tela. Os dois homens se reúnem para uma massagem e sexo casual. Trata-se de um contrato com hora marcada e valores combinados. Ainda assim, concluído o ato (que o filme torna tão claro quanto pudico, cuidando dos enquadramentos para esconder a nudez dos atores), minúsculos gestos de carinho passam a se desenhar em tela. O profissional ajuda o seu cliente no banho – algo que certamente não precisaria fazer. Uma vez vestidos, o massagista ganha uma caixinha de música, cuja canção se torna ainda mais potente em contraste com tantos momentos de silêncio. Na saída do quarto, um abraço inesperado. Outros pequenos gestos se seguirão, ainda mais fortes por virem de um mundo seco e desprovido de relacionamentos. O roteiro jamais cairia na tentação de criar uma grande história de amor: o diretor tem consciência de que não caberia sugerir o nascimento de um romance a partir de mero trato comercial. No entanto, Dias faz questão de comprovar o efeito marcante que esta pequena noite terá na vida de um e de outro. A cena final combina a solidão e o carinho, o silêncio e os barulhos ensurdecedores da cidade. O espectador testemunha, privilegiado, aquelas horas tão especiais que eles não compartilharão com mais ninguém.
Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.
Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)
- O Dia da Posse - 31 de outubro de 2024
- Trabalhadoras - 15 de agosto de 2024
- Filho de Boi - 1 de agosto de 2024
Deixe um comentário