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Crítica


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Sinopse

Após 15 anos distantes, mãe e filha voltam a conviver. Diante da difícil tarefa da reconciliação, elas descobrem que são apaixonadas pelo menos homem.

Crítica

Preocupada com a situação matrimonial da mãe, a pequena Rebeca, ainda criança, comete seu primeiro crime passional ao provocar a morte do padrasto que não queria permitir o divórcio. A famosa cantora Becky del Páramo (Marisa Paredes), que então se vê desimpedida por conta da viuvez, abandona a menina, deixando-lhe uma herança amarga. Após muitos anos de separação, elas se reencontram quando a artista decide voltar a morar em Madri. A agora adulta Rebeca, vivida por Victoria Abril, expressa euforia ao rever a mãe, demonstrando que a temporada de afastamento não diminuiu sua veneração. De Salto Alto parte dessa relação e de seus efeitos, entre os mais e os menos visíveis, decorrentes da não reciprocidade, já que o amor filial beira a obsessão, enquanto a resposta maternal é distanciada, no mais das vezes. Pedro Almodóvar faz aqui um filme irregular, dos mais claudicantes de sua carreira repleta de êxitos, entretanto, mesmo assim, permeado por diversos momentos interessantes.

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Becky encontra uma Madri muito diferente daquela que testemunhou sua ascensão. A filha é apresentadora de telejornal e casada com um ex-amante seu. Esse dado, por si, ajuda a mostrar como a relação entre as duas é complexa, sobretudo em virtude das inúmeras e recorrentes tentativas de Rebeca de equiparar-se à genitora famosa. Também sintoma dessa identificação quase patológica é o sexo da jovem com o transformista que imita sua mãe, uma cena que transborda a sensualidade faltante ao resto do filme, principalmente porque, ao contrário de outras realizações pregressas de Almodóvar, em que o sexo era visto como uma força praticamente irrefreável, porém vital, no fim das contas, aqui ele é exposto em sua faceta destrutiva. Em De Salto Alto o problema começa no roteiro, demasiadamente compartimentado, o que acarreta uma sensação de fragmentação contraproducente e deságua numa dificuldade de modular os cânones do melodrama, aqui mal enjambrados.

O segundo crime motivado pelas coisas do coração torna De Salto Alto um filme de investigação. A partir daí, cresce a participação do juiz Dominguez (Miguel Bosé), homem da lei que ostenta uma barba visivelmente falsa. Almodóvar não pretende fazer dessa figura um mistério ao espectador, já que sua verdadeira identidade é evidente. Esse escancarar corrobora com a sensação de deboche desengonçado, algo estranho em se tratando do cinema do espanhol, no qual geralmente tão bem convivem o dramalhão e a graça, a sátira e a crítica incisiva. A essência camaleônica do personagem de Miguel Bosé é subaproveitada, permanecendo restrita às implicações práticas da múltipla participação dele na trama. No que tange ao trabalho dos atores, porém, o longa-metragem exibe a excelência comumente associada às obras de Almodóvar, cineasta formalista, atento aos mínimos detalhes, do figurino à cenografia, mas fundamentalmente atraído pelo aspecto humano.

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De Salto Alto ganha um terceiro crime passional. Contudo, a mentira que fere a lei de Deus e ludibria a dos homens, está a serviço da vontade de fazer justiça. Como forma de alcançar a redenção, Becky deixa cair sobre seus ombros a culpa, não somente a alheia, mas principalmente a sua, acumulada nos anos de ausência. Numa conversa com intensa carga dramática, Rebeca cita abertamente Sonata de Outono (1978), drama dirigido pelo sueco Ingmar Bergman, no qual há também complexa dinâmica entre uma mãe famosa e a sua filha condenada à sombra. Embora um tanto forçada, pois não há muitos pontos verdadeiramente sólidos de ligação entre um filme e outro, assim sendo, justificada apenas pela vontade de Almodóvar de homenagear Bergman, a passagem serve para que as mágoas de Rebeca, trancadas no recôndito da alma, ganhem a superfície, movimento que encaminha um acerto de contas tortuoso, mas nem por isso menos libertador.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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