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Sinopse

Durante a quarentena imposta pela pandemia do Covid-19, a atriz e diretora Deborah Finocchiaro faz do isolamento um espaço para novas narrativas e encontros, muitos deles permitidos pela rede.

Crítica

A experiência do isolamento social, a angústia diante de uma pandemia e da crise político-econômica constituem um momento inédito na contemporaneidade, sendo compreensível que o cinema queira se amparar desta questão e representá-la em imagens. A paralisação das atividades impediu a concretização de projetos em formatos “tradicionais”, mas permitiu experiências criativas dentro da casa dos atores e criadores, com direito a direção e finalização à distância. A chegada de um filme como Deborah! O Ato da Casa (2020) a um festival de cinema, apenas seis meses após o início da quarentena, interessa sobretudo enquanto sintoma: trata-se de uma obra urgente, realizada com pouquíssimos recursos, e concluída com uma rapidez incomum dentro do processo habitual de criação. Para efeito de comparação, os títulos sobre outro feito histórico marcante, o golpe contra Dilma Rousseff, demoraram anos para chegar às salas (e ainda há projetos a respeito em fase de conclusão). No que diz respeito à Covid-19, este filme refletindo o distanciamento chega a Gramado enquanto a pandemia permanece descontrolada, sem vacinas prontas no horizonte, quando muitas pessoas sem mantêm em quarentena – ou, pelo menos, deveriam.

A atriz e diretora Deborah Finocchiaro, protagonista do projeto, constitui uma fascinante interlocutora para discutir a arte enquanto forma de resistência política. Dotada de uma fala potente, e ao mesmo tempo divertida e coloquial, ela discorre não apenas sobre os espetáculos mais marcantes de sua carreira, mas também sobre a paixão pela poesia, a importância de falar sobre a menopausa, a arrogância de certa esquerda intelectual, as imposições de beleza aplicadas ao corpo das mulheres. Embora a condução do diretor Luiz Alberto Cassol seja bastante simples, limitando-se a pedir que ela comente peça por peça, de maneira linear e cronológica, a artista aproveita a oportunidade para expandir a discussão a domínios muito mais amplos. Finocchiaro deixa de falar sobre sua arte para debater a arte em geral, situando-a no momento de calamidade política em que nos encontramos e aludindo, indiretamente, à experiência da quarentena. O isolamento não constitui o tema central da obra, no entanto, ele está presente de maneira evidente pela forma, e também pela paixão com que a intérprete narra a vivência sobre os palcos, dos quais está afastada em virtude das recomendações sanitárias. Mistura-se paixão e saudade pelo teatro, desolação e combatividade contra os desmandos do atual governo.

É uma pena que, enquanto conceito cinematográfico, o resultado seja fraco. Para uma obra realizada através de uma conversa por Skype, teria sido essencial refletir sobre este suporte, sobre a textura das imagens e a forma atípica de comunicação em 2020. O início acena a este debate, expondo ao espectador os problemas de conectividade, as telas congeladas, a necessidade de recomeçar a conversa quando a Internet trava. Há falhas inerentes à tecnologia, que a montagem felizmente incorpora ao corte final. No entanto, passada a introdução, o documentário abandona reflexões metalinguísticas para desenvolver uma espécie de live (para citar outro formato dos “novos tempos”) registrada e entrecortada com trechos dos trabalhos da atriz. Antes de cada pergunta, o cineasta informa à interlocutora sobre dados de que ambos dispõem, apenas para contextualizar ao espectador, o que resulta numa artificialidade prejudicial. Ele explica à atriz que a convidou para o filme, e que ela concordou em participar. A respeito de certas peças, explica por tempo permaneceram em cartaz. O mecanismo produz a mesma estranheza de chegar a Fernanda Montenegro e dizer, por exemplo: “Você que é atriz, que atua desde os anos 1950, que trabalhou em Central do Brasil (1998) e A Vida Invisível (2019)... Fale mais sobre a sua carreira”. Haveria maneiras mais orgânicas e criativas de transmitir os mesmos dados ao espectador.

Além disso, a conversa se revela formal, em viés próximo da matéria jornalística. Ao se pautar pela sucessão de peças, ao invés de outros temas transversais, Cassol efetua um “apanhado geral” da carreira, sem provocar por conta própria discussões mais abrangentes. Felizmente, a artista toma as rédeas da conversa e, com muito bom humor, expande o escopo do debate. No entanto, a escolha de o filme ao longo de uma única conversa, num enquadramento único para Finnochiaro (apesar de o computador ser filmado por ângulos diferentes) empobrece a experiência. Recentemente, É Rocha e Rio, Negro Léo (2020) também se baseou em conversas entre duas pessoas para construir um documentário. No entanto, a diretora Paula Gaitán desenvolveu o projeto ao longo de diversos dias, em cenários, contextos, iluminações e momentos distintos, o que permitia ao protagonista refletir sobre o que havia dito nos dias anteriores, reescrevendo suas próprias palavras. Havia textura e movimento na interação entre ambos. Ora, Deborah! O Ato da Casa possui uma estrutura estanque, cuja culpa não pode ser atribuída unicamente ao dispositivo da conversa via Skype. A atriz poderia filmar a si mesma, poderia registrar a tela de seu computador, ou ainda levantar e explorar a casa, buscar novos ângulos, enviar seus vídeos de WhatsApp etc. Enquanto isso, o diretor poderia incluir ligações telefônicas, filmagens de si próprio, reações do diretor de fotografia andando de um lado para o outro em sua casa, e uma infinidade de recursos possíveis dentro da imposição da distância e das ferramentas tecnológicas.

“Esse é o momento de exercitar a imaginação”, alerta a atriz a respeito do teatro, disparando uma mensagem que deveria ressoar no filme como um todo. É justificável que Cassol assuma uma obra minimalista e jamais pretenda fazer algo maior do que uma conversa. No entanto, os tempos pandêmicos e os recursos virtuais não justificam tamanha limitação da interatividade. República (2020), de Grace Passô, os coletivos Feito em Casa (2020) e Antologia da Pandemia (2020) revelaram inúmeras possibilidades de brincar com a limitação do dispositivo e utilizá-la a seu favor. Os principais méritos do documentário selecionado na Mostra Gaúcha do Festival de Gramado recaem sobre a atriz e suas peças, ao invés do filme em si. A impossibilidade de encontrar nossas pessoas queridas, de reunir a equipe num set, poderia estimular obras radicais, arriscadas – que fosse para acertar ou errar o alvo. Este projeto se revela seguro e comportado demais, sem compreender que a forma, sobretudo para um filme realizado via telas e aplicativos, carrega forte significado. Não basta ceder espaço com tamanha generosidade à atriz: falta desenvolver a linguagem que serve de apoio à conversa e que se torna um objeto de estudo tão importante quanto a arte de Deborah Finocchiaro.

Filme visto online no 48º Festival Internacional de Cinema de Gramado, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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