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Crítica


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Sinopse

Três vizinhos suburbanos se submetem às consequências do mundo orientado pelas mídias sociais. Marie tem medo de perder o respeito do filho por conta do vazamento de uma filmagem de sexo. Bertrand não consegue dizer não às ofertas da publicidade e luta para proteger a filha intimidada online. Já Christine, após perder tudo por conta de seu vício em séries de TV, se questiona o motivo de sua classificação Uber não ser mais alta.  

Crítica

A figura do loser se transformou bastante na nova geração. Vinte anos atrás, talvez a imagem do fracassado correspondesse ao adulto sem um amor, sem trabalho, sem família – uma pessoa carente, enfim, como o antigo astro mirim que “tinha muito amor para dar”, mas não sabia “onde colocá-lo” em Magnólia (1999), ou então pessoas entupidas de remédios, acumulando fobias e psicopatologias como em Pequena Miss Sunshine (2006). O “perdedor” se definia pela falta, fosse de afeto ou estabilidade. Agora, no entanto, os diretores Gustave Kervern e Benoît Delepine, em Apagar o Histórico, parece nos dizer que sofremos pelo excesso. Os perdedores possuem famílias, transam quando querem com a ajuda de álcool e aplicativos de celular, e têm empregos, ainda que precários. Conquistamos os desejos imediatos enquanto abrimos mão da qualidade: trabalhamos em lugares ruins, temos famílias infelizes e relacionamentos pouco satisfatórios.

Esta nova geração de carências é retratada em Apagar o Histórico, comédia que mira em absolutamente todos os problemas da nova geração ultraconectada. Os cineastas fogem dos clichês aterrorizante de Facebook e Instagram como veículos de solidão, e armadilhas nocivas à nova juventude. Eles colocam as redes sociais e a adolescência em segundo plano para se focarem em três fracassados adultos e de classe média. O trio não está preocupado em parecer belo e receber likes: o que importa à motorista Christine (Corinne Masiero), à dona de casa Marie (Blanche Gardin) e ao pai solteiro Bertrand (Denis Podalydès) é conseguir mais estrelas no aplicativo de transporte, descobrir com quem reclamar quando uma foto indesejada cai na Internet, receber seus galões de água em casa através de serviços de entrega rápida. Seria fácil ridicularizar a futilidade dos adolescentes ou a ignorância dos idosos diante do mundo tecnológico, mas o roteiro prefere observar a geração intermediária que conviveu com todos os serviços analógicos, e hoje efetua a transição ao digital.

São eles que, uma vez confrontados aos problemas da virtualidade, ainda buscam a materialidade das coisas: querem ver com quem estão conversando, desejam encontrar o vídeo físico para deletá-lo e confrontar as pessoas que avaliam negativamente uma corrida bem-sucedida. O trio representa uma forma desesperada e quixotesca de luta contra o sistema – não por acaso, os três cavaleiros loucos se confrontam literalmente a moinhos de vento em virtude do perigo de terem suas sex tapes vazadas ou da vontade de conhecerem uma sedutora atendente de telemarketing. Os diretores e roteiristas possuem notável talento de cronistas dos nossos tempos, incluindo dezenas de fatores de fácil identificação ao público médio, que não costumam ser inseridos nos roteiros cinematográficos: a dificuldade de lembrar todas as nossas senhas, os longos contratos de termos e condições que ninguém lê, as demandas de verificação do Google de que você é você mesmo (“Clique em todas as imagens com semáforos”), a confusão ao buscar o carregador de celular correto entre tantos que acumulamos em nossas gavetas.

O humor deste filme funciona, em partes, por ser tão simples e próximo de uma classe média quase universal, graças à globalização e à imaterialidade dos recursos e serviços. Existe um caráter inerentemente provocador no fato de o filme nos convidar à identificação com estas pessoas “perdedoras”, por supor que sejamos um deles. Além disso, os diretores jamais limitam a comicidade aos diálogos, construindo a ironia do cotidiano por meio de uma estética muito particular. Kervern e Delepine exploram a imagem granuladíssima da película, a câmera na mão quase caseira e uma movimentação livre como no registro do Dogma dinamarquês. Ora, este era um movimento destinado a afastar a artificialidade e buscar uma forma de realismo cru, no entanto, no caso da produção franco-belga, o estilo reforça a artificialidade das nossas vidas. O discurso se torna muito mais potente ao imprimir a linguagem típica do naturalismo, beirando o documental, dentro de uma comédia bastante roteirizada e controlada. A dupla permite inclusive que motivos absurdos se introduzam na trama, como o monólogo sobre a falta de manteiga, em plano extremamente próximo de Denis Podalydès, ou o confronto de Marie com a sede dos arquivos do Google (“My pussy is in the cloud! My pussy is in the cloud!”).

Apagar o Histórico se torna ainda mais eficaz graças ao talento dos cineastas para a direção de atores. Três excelentes atores dramáticos e cômicos compõem o trio principal, sabendo explorar o ridículo das situações com naturalidade, ou seja, confiando na capacidade do público em perceber as ironias. Estes mesmos diálogos poderiam soar óbvios demais nas mãos de intérpretes menos qualificados, porém Masiero, Podalydès e Gardin possuem pleno controle de tom e gestos – eles encarnam os losers, e não uma caricatura dos losers. Kervern e Delepine têm plena consciência de que o público precisa rir com eles, e não deles. A empatia a direção pelo trio se torna fundamental ao humanismo do projeto. É certo que às vezes a distribuição dos conflitos soa pouco equilibrada (o problema de Christine é simples, e se resolve mais facilmente), e o tipo de humor poderia se desenvolver mais. Talvez o resultado se reduza de fato a um mero catálogo de nossos conflitos tecnológicos. No entanto, os diretores conseguem reuni-los numa ótima comédia, representando de modo ácido os nossos tempos, não por citar telefones celulares e vídeos pornográficos, e sim por captar um tipo de angústia social muito distante daquela ânsia de encontrar o grande amor dos losers de antigamente.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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