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Crítica


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Sinopse

Jamie é um garoto tímido, que sofre bullying dos colegas de escola. Seus melhores amigos são Leah, a vizinha extrovertida que sonha em se tornar uma cantora famosa, e Ste, colega de turma mais enturmado devido à paixão pelo esporte. Quanto Jamie e Ste enfrentam as violências físicas e psicológicas de suas famílias, os garotos acabam se unindo, e descobrindo a paixão um pelo outro.

Crítica

A cena inicial fornece uma ótima síntese do projeto como um todo. Durante um jogo de futebol na escola, Jamie (Glen Berry) foge ao treino, por detestar o esporte e sofrer com o bullying dos colegas. Ste (Scott Neal) participa do jogo e demonstra talento, porém não se sente à vontade ali, nem aprecia a amizade dos outros rapazes. Durante um rápido segundo, os olhares de ambos se cruzam, transparecendo uma cumplicidade entre os rapazes igualmente deslocados, ainda que por razões distintas. A sequência adquire um tom ao mesmo tempo romântico (percebe-se o amor entre ambos em questão de segundos), dramática (eles não possuem meios de contestar ordens, sofrendo calados) e cômica (as ordens brutas da treinadora, o falso nome dado a Jamie pelo treinador). Os protagonistas são descritos pela vida difícil, e também pela autoconsciência desta situação: eles enfrentam a pobreza, a violência familiar e o desejo homoerótico há tempos. Quem está descobrindo algo, no caso, é o espectador, uma vez que a trama se inicia diante de um fato consolidado, e de cenas cotidianas. A homossexualidade dos rapazes não constitui o conflito central, apenas mais um obstáculo rumo à concretização de uma vida satisfatória.

A princípio, a história em estilo boy meets boy serviria aos piores clichês da idealização sentimental, como se o amor pudesse salvá-los dos percalços da classe média-baixa. Ora, o roteiro de Jonathan Harvey, a partir de sua própria peça de teatro, e a direção de Hettie MacDonald se esquivam habilmente das armadilhas. Jamie e Ste, dois vizinhos, se conhecem desde a infância, e o relacionamento entre ambos demora a ocorrer de fato. Ao invés do amor perfeito, desenha-se uma cumplicidade dentro da qual o erotismo desempenha um papel secundário. Sobretudo, a descoberta do afeto jamais isenta a dupla dos conflitos cotidianos: eles ainda precisam lidar com os problemas na escola, as broncas dos pais, o dinheiro limitado, o barulho alto dos vizinhos. É comum abordar o amor enquanto parêntese do cotidiano, ou seja, uma fuga do real por intermédio das emoções. Ora, o discreto relacionamento se encaixa nas pequenas frestas permitidas pela rotina que exige lavar roupa, frequentar a escola, carregar as compras, lidar com o namorado da mãe e as pressões machistas do irmão. Delicada Atração (1996) propõe algo muito mais natural e mais complexo do que a simples alternância entre cenas alegres e cenas tristes: todas as sequências dramáticas se tornam, às vezes dentro do mesmo plano, hilárias, enquanto os instantes iniciados pela comicidade adquirem um caráter amargo ao final.

Talvez a maior recompensa diante da experiência deste filme provenha do carinho percebido pela cineasta na maneira de filmar. Esta mesma premissa poderia render um drama muito mais cru (nas mãos de Mike Nichols, por exemplo) ou mais edulcorado (com Stephen Frears, digamos). Entretanto, os enquadramentos, a profundidade de campo e a duração dos planos estão impregnados de uma sensibilidade agridoce perceptível em cada imagem. Jamie observa pela primeira vez a nudez do amigo, que se veste no banheiro, mas o plano de detalhe nas nádegas de Ste adquire outro tom quando a câmera se levanta e revela as costas repletas de machucados, fruto de uma agressão do pai. Quando ambos se beijam numa floresta, após uma noite agradável juntos, a câmera se permite quase literalmente dançar: a imagem flutua de um lado para o outro, se aproxima do beijo (ou seja, com orgulho de mostrá-lo de perto), e depois se afasta. A trilha sonora se encarrega de intervalos doces, porém discretos e pontuais. Os primeiros 15 minutos, quando meia dúzia de personagens são apresentados ao mesmo tempo, atestam o primor de roteiro, direção e montagem: cada figura ganha uma caracterização distinta, enquanto se valoriza as relações entre eles no cotidiano. As potentes cenas no corredor externo do edifício sugerem o senso de comunidade de indivíduos que se adoram e se odeiam em igual medida, aprendendo a conviver lado a lado, dentro de apartamentos minúsculos.

Os diálogos constituem um ponto alto do projeto. O texto está repleto de humor mordaz, seja irônico, seja autodepreciativo. Jamie ataca a mãe que devolve o sarcasmo, depois aplicado à vizinha Leah, e rebatido em Ste, então aplicado ao namorado de Sandra... A bondade na construção dos personagens jamais se transforma em condescendência: estes sobreviventes sabem muito bem se virar sozinhos, e não se surpreendem com as agressões sofridas. Os atores estão à altura do desafio proposto pelo roteiro. Linda Henry, em especial, está formidável como a mãe de Jamie, tão violenta quando protetora. Não há uma única fala em que ela não extraia o melhor do humor e do drama. Tameka Empson e Ben Daniels desempenham com naturalidade papéis que poderiam se tornar histriônicos, e acabam por balancear as composições mais tímidas dos protagonistas. Glen Berry e Scott Neal se tornam responsáveis por reagirem às circunstâncias, ao invés de movimentarem a trama. Delicada Atração possui poucas reviravoltas, preferindo se concentrar no dia a dia ao invés de uma passagem exemplar. Por isso, a riqueza da direção de arte (os apartamentos pequenos e coloridos, as roupas em tons pastéis), da fotografia naturalista e da montagem, trabalhando muito bem as elipses, se tornam fundamentais para a verossimilhança e identificação com aquele espaço.

No Brasil, o título original se transformou em algo pejorativo: “delicada atração”, na época em que “delicado” constituía o eufemismo preferido dos distribuidores para dizer “gay”. A associação entre a homossexualidade masculina e a delicadeza, ou seja, a fraqueza, a sensibilidade e a feminilidade atesta a dificuldade do cinema em lidar com o tema. Neste sentido, o resultado constitui um belíssimo romance por não fazer do amor uma finalidade, e sim um meio. Jamie e Ste estão imersos entre uma dezena de personagens de destaque, em meio a problemas muito maiores do que amar ou ser amado. O projeto não se legitima pela expectativa do beijo ou da concretização dos laços entre ambos. Jamie e Ste são gays, porém não são definidos por isso, enquanto os pais, mães, vizinhos e amigos não se resumem à resposta tolerante ou preconceituosa à orientação sexual. O maior sinal de respeito da cineasta em relação aos garotos consiste em enxergar a orientação sexual como um fator entre tantos outros na passagem à fase adulta. A belíssima cena final traduz uma poesia possível, ou seja, um enfrentamento simbólico à sociedade. Neste momento, os garotos “criam a sua própria música”, como prega a voz de Mama Cass, personagem importante nesta trama. A sexualidade é vista enquanto forma de autonomia e liberdade, ou seja, um processo de emancipação. O ato de dançar em público com a pessoa amada se torna algo tão pequeno (são apenas duas pessoas num pátio imenso) quanto gigantesco (pelo peso político do ato). Trata-se de um momento simultaneamente triste, gentil e hilário, como o filme inteiro.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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