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Crítica


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Sinopse

Enviado para mapear montanhas da Mongólia, o capitão Vladimir Arseniev encontra Dersu Uzala, caçador que vive apenas na floresta. O militar oferece ao nativo a função de guia da expedição. No caminho, nasce uma forte amizade.

Crítica

O filme se inicia e se encerra com o mesmo suspiro: “Dersu...”, disparado pelo Capitão Arsenev (Yuriy Solomin) ao vazio. Em ambos os casos, o personagem russo se sente solitário, cercado por homens que desconhecem Dersu Uzala, e não compreendem o impacto que o caçador nanai desempenhou na vida do oficial. Apenas o espectador descobrirá, ao longo de quase 150 minutos, o valor desta relação, na qual o chamado “Dersu!” será sempre respondido com “Capitão!”, ambos igualmente entusiastas. Ao começar pelo fim, ou seja, pelo enterro do protagonista, o diretor Akira Kurosawa faz com que toda a história se construa como um longo flashback da primeira década do século XX, quando uma expedição soviética conta com a ajuda do caçador para explorar a Sibéria. Devido a este recurso, o filme é impregnado de nostalgia, ao presenciarmos não apenas uma amizade profunda e improvável como o término da mesma devido à morte. Ao unir Dersu (Maksim Munzuk) e Arsenev, a narrativa reúne o campo e a cidade, o paganismo e o monoteísmo, uma concepção individualista e nômade contra outra, conquistadora e defensora da propriedade privada.

A produção assume a difícil tarefa de filmar longas travessias na neve, tempestades de areia, ataques de tigres selvagens, geleiras derretendo, correntezas perigosas. Trata-se de uma aventura por definição, não apenas pelos obstáculos impostos no caminho dos personagens, mas pela noção de que a travessia é mais importante do que o destino. No roteiro, o grupo de cartógrafos efetua pouco trabalho de cartografia, enquanto o caçador passa pouco tempo caçando. A direção privilegia o imperativo do deslocamento, fazendo com que Dersu, Arsenev e os outros homens se confrontem a conflitos decorrentes do cenário, como a fome e o frio. Ao invés de fornecer conflitos externos, a exemplo da presença de inimigos (um grupo de bandidos é logo afastado da trama), Kurosawa permite que os problemas e recompensas provenham organicamente do processo de desbravamento do território. O veterano japonês sempre demonstrou um talento imenso não apenas para a direção, mas também para o roteiro, como se percebe em mais um texto exemplar. Os personagens possuem complexidade psicológica ímpar, não precisando ser definidos por traumas nem perdas pessoais. Suas jornadas se desenvolvem em ritmo cadenciado, mas não acelerado demais. Existe espaço para a contemplação, para ações cotidianas como comer e dormir juntos.

Mais uma vez, o diretor japonês se mostra avesso à lógica do espetáculo que nasceria no mesmo ano de Dersu Uzala (Tubarão de Steven Spielberg, considerado o marco inaugural dos blockbusters, também data de 1975). Ainda mais impressionante é o trabalho de cores para um diretor que vinha se especializando há mais de duas décadas na filmagem em preto e branco. A produção da Mosfilm é captada em monumentais 70mm, capazes de combinar o granulado com a diversidade de cores fundamentais ao retrato das estações do ano, com foco no outono que marca o início da história. O filme está repleto de cenas que se assemelham a quadros impressionistas, perfeitamente integrados à trama, sem parecerem um exercício de vaidade da direção. O cineasta reúne vertentes de difícil conciliação: ele combina tanto o aspecto mais realista e documental das paisagens quanto o elemento mágico, reverencial, sublinhado pelos momentos pontuais de trilha sonora de orquestra em tom de fantasia. Foram necessários três diretores de fotografia para dar conta do processo tão amplo e, ao mesmo tempo, tão íntimo. Kurosawa organiza seu épico que atravessa vários anos em torno de duas figuras de poucas palavras, comunicando-se num russo rudimentar devido à baixa instrução do caçador. Um dos melhores instantes de Dersu Uzala provém da descoberta de um homem chinês, idoso e solitário, que “observa a natureza há 40 anos”. De acordo com o protagonista, ele seria necessariamente um sábio, por ter observado flores até desabrocharem.

O protagonista adquire um caráter lendário, ainda que simultâneo à sua presença tão realista diante das câmeras. Se cenas como o quase afogamento soam naturalistas até demais, as descrições de Dersu sobre si mesmo o aproximam de uma figura mitológica. Questionado sobre sua idade, ele responde: “Não sei bem. Eu vivo há muito, muito tempo”. O reencontro aleatório com Arsenev na floresta anos mais tarde também se aproxima de uma função protetora: Dersu se torna o anjo da guarda do capitão num primeiro momento, apenas para precisar da ajuda dele mais tarde. “Eu não teria sobrevivido sem você”, confessa o capitão, numa declaração de amor emocionante dentro de um filme sobre a fraternidade entre diferentes povos e culturas. A sequência de fotos em preto e branco da dupla, contrastando com a intensa paleta de cores, torna a relação ainda mais concreta, pois imortalizada pelas imagens. O cinema de natureza exploradora viria a proporcionar obras tão fetichistas em relação aos povos autóctones (vide Z: A Cidade Perdida, 2016) que muitos dos novos diretores fariam bem em assistir novamente a este clássico. Talvez apenas Kelly Reichardt e Naomi Kawase tenham atualizado com maestria a ideia da amizade entre povos distintos na floresta, colocando-os em pé de igualdade sem assumir o olhar do colonizador.

Ao longo da narrativa, a natureza aproxima-se cada vez mais de uma antropomorfização. O vento, o fogo e a água são considerados “três homens fortes” pelo caçador nanai, enquanto Dersu conversa com um tigre, pedindo-o que se afaste dos soldados que terminarão por matá-lo. Kurosawa oferece uma dezena de cenas de plasticidade inacreditável, focando-se na pequeneza dos seres humanos diante da natureza. A conversa da dupla diante do Sol e da Lua ao mesmo tempo; o colapso do capitão em plena tempestade de areia, em contraluz, e a correnteza cada vez mais violenta dentro de uma mesma cena de poucos cortes transparecem a admiração e o respeito pela natureza, sem idealizá-la. O discurso jamais soa ingênuo, do tipo que atribui virtudes morais às árvores e animais, porém o diretor estabelece uma noção de espaço onde as regras humanas não valem mais. Quando o capitão oferece dinheiro pelo trabalho como guia, Dersu responde: “O que eu faria com isso?”. Estamos numa época anterior aos efeitos visuais, apegada à materialidade dos cenários, das locações, dos figurinos. Dersu Uzala apresenta a nostalgia de um cinema de aventuras pré-heroísmo, uma narrativa anticolonialista sobre exploradores, e um cinema épico incapaz de sobrepor o homem à natureza. Aqui, humanos e paisagens se fundem até se tornarem um só, como literalmente acontece na comovente cena de conclusão.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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