Crítica
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Cash (LaKeith Stanfield) é apenas um cara tentando encontrar a ocupação que lhe garanta o sustento, sem alimentar grandes ambições. Sua relação com o Mercado, essa máquina de moer carne que o espreme direta e indiretamente, se inicia com mentiras recompensadas. O encarregado vê como iniciativa a apresentação da falsa narrativa de sucesso construída para vencer a concorrência. Em Desculpe Te Incomodar são claras e amplamente propagadas as mensagens de que o capitalismo não existe sem competição e subserviência, que a propaganda desempenha papel essencial para vender um estilo de vida voluntariamente servil e que é muito provável cair nas artimanhas dos que mandam. O fato do protagonista virar um atendente de telemarketing, e, principalmente, dessa atividade ser esquadrinhada como sintoma, vem da contestação do sistema nebuloso que aposta na impessoalidade das relações, na propagação de necessidades que verdadeiramente não temos.
Desculpe Te Incomodar fica entre a sátira mordaz e a fábula contemporânea para desenhar um mundo que convida Cash (não à toa seu apelido significa literalmente dinheiro em inglês) a participar desses jogos escusos feitos, inclusive, da subversão dos afetos genuínos. O jovem se encontra convencido pelas circunstâncias de que a ambição é uma coisa boa e somente pode ser saciada com a gradual abstenção de movimentos gregários, tais como a luta por direitos e a reivindicação de melhores condições aos trabalhadores. Arremessado pela adulação dos patrões contra as demandas dos amigos e da namorada, Detroit (Tessa Thompson), ele é nutrido com a falsa noção de pertencer à elite, com direito a acesso ao elevador dourado dotado de dizeres motivacionais ridículos. Aliás, o filme de Boots Riley (olho nele) lida com as ideias e os códigos de uma burguesia cafona. Quanto mais próximos do poder, mais estereotipadas e postiças são as pessoas, como o papel de Armie Hammer. Contrapondo essa estética opulenta e exagerada, a da jovem que utiliza sua prerrogativa artística no cotidiano.
As manifestações políticas de Desculpe Te Incomodar são claras, enunciadas e abertamente debatidas, mas também estão nos detalhes. Detroit, por exemplo, diz que foi assim batizada “porque meus pais queriam um nome bem norte-americano”. Ora, uma breve pesquisa no Google sobre a metrópole é suficiente para captarmos a intenção, uma vez que a cidade estadunidense homônima da personagem de Tessa Thompson entrou numa severa recessão econômica nos anos 1970 e em 2013 chegou a decretar falência. Um totem da natureza predatória do industrialismo, pois a localidade foi antes considerada uma joia dos Estados Unidos por conta da seara automobilística. Além disso, sua quebradeira ocasionou um êxodo de moradores brancos ao subúrbio, fazendo com que a população negra da urbe aumentasse consideravelmente. Aliás, quanto ao tecido narrativo do filme, a questão racial é amplamente contemplada em níveis, vide fala sobre o papel da escravidão ao capitalismo, e circunstâncias absurdas, tais como a “voz de branco” que garante o sucesso no telemarketing.
Todavia, as indagações decorrentes das tensões raciais passam também pelas entrelinhas, como quando Cash vira meme. A agressão com um símbolo dessa sociedade essencialmente de consumo viraliza, chegando a transformar-se em fantasia. Primeiro, as perucas de fios enrolados com a lata de refrigerante vermelho sabor cola são utilizadas para ridicularizar o protagonista. Mais tarde, elas são reapropriadas pelos marginalizados e reivindicantes, num deslocamento semelhante ao de determinadas palavras ressignificadas, que deixam de ser pejorativas para ganhar conotações de empoderamento. Desculpe Te Incomodar possui uma retórica político-social absolutamente sólida, com as filigranas substanciando intensamente os elementos explicitados, o que instaura uma sensação de consistência e densidade. O cineasta Boots Riley projeta um itinerário visual muito criativo, repleto de inventividades como as intrusões literais da mesa de trabalho durante as ligações.
Em Desculpe Te Incomodar, Cash é levado crer na necessidade de agarrar as oportunidades de capitalizar sobre o seu enorme talento persuasivo. O roteiro seguido nas ligações refuta o humanismo, pois mira com frieza o resultado. Nessa escalada em que deixa para trás valores aos quais parecia anteriormente bastante aferrado, ele se vê crescentemente como uma ilha, perdendo conexões verdadeiras em função de adulações patronais para continuar agindo como ferramenta de opressão. A única coisa que o faz acordar é uma agressiva extrapolação dos limites. Mas, assim que “desperta”, percebe que boa parte do entorno está mergulhado nos dejetos de uma coletividade com inclinações escravagistas, ávida por privilégios, ao ponto de nem mesmo uma mutação genética provocar espanto nos entorpecidos. LaKeith Stanfield, num papel originalmente escrito para Donald Glover, está excepcional como esse sujeito cujas oscilações são alimentadas pelo andamento teleguiado desde que o mundo passou a tolerar a exploração de milhares para o benefício de tão poucos.
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