Crítica
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Sinopse
O Rio de Janeiro não é nada familiar para Joana, adolescente que teve o pai refém como prisioneiro político durante os anos de ditadura no Brasil. Ela passou quase toda a sua vida em Paris, cidade onde o resto de sua família se exilou. Tendo sido decretada a Lei da Anistia, a menina agora está, a contragosto, de volta a sua cidade natal. As memórias amargas de tempos difíceis vêm à tona, causando um forte desconforto.
Crítica
A cineasta Flavia Castro segue interessada pelos duros estilhaços da ditadura civil-militar brasileira. Depois de construir um percurso pessoal e contundente acerca dos anos de chumbo no ótimo documentário Diário de Uma Busca (2010), ela agora estreia na ficção com Deslembro, centrado no retorno de uma trupe de anistiados, outrora obrigada a recorrer ao exílio em Paris. A protagonista é a jovem Joana (Jeanne Boudier), completamente adaptada à vida francesa, e que, como era de se esperar, reluta fortemente quando a mãe decide regressar ao Brasil. Nesses primeiros instantes do filme, há o desenho de uma família profundamente marcada por regimes autoritários sul-americanos. A matriarca, vivida por Sara Antunes, casou-se de novo, com um argentino igualmente perseguido por aliar-se à resistência. No ambiente doméstico, a babel é deflagrada pelos diálogos que se dão em português, francês e espanhol, às vezes ocorrendo a mescla de idiomas numa mesma frase, um procedimento sintomático e muito bem articulado.
Deslembro alinhava o percurso de amadurecimento de Joana com as feridas do período em que o Brasil foi chefiado pelos milicos. A trama se passa em 1979, ou seja, com o regime em vigor, portanto, distante de qualquer esforço do Estado para encontrar os desaparecidos políticos. A adolescente que gradativamente se adapta ao país carrega a dor de ter perdido o pai (vivido nas reminiscências por Jesuíta Barbosa), cujo cadáver sequer foi encontrado. Essa particularidade acessa uma realidade infelizmente comum, a dos homens e mulheres que se opuseram veementemente ao governo da época, tendo seus corpos torturados e depois sumidos. A menina não compreende bem como podem todos sofrer a perda se não há comprovação da morte. Os adultos, por sua vez, entendem que o silêncio sobre qualquer paradeiro, isso depois de uma passagem pelos porões do famigerado DOPS, o Departamento de Ordem Política Social, é um sinal quase irrefutável da perda definitiva. O filme trata disso com bastante sensibilidade.
Com uma bela fotografia de Heloísa Passos, Deslembro ainda guarda espaço para certa ludicidade, uma vez que Joana possui irmãos mais novos e tem forte ligação com o caçula. A composição excelente da atriz Jeanne Boudier garante a relevância dos dilemas intrínsecos ao prenúncio da vida adulta. Flavia Castro, porém, perde um pouco a mão no imbricamento desse florescer e dos flashes do passado que ela utiliza como peças de um quebra-cabeça para tentar obter a imagem do pai. A narrativa parece estagnada em determinados momentos e alguns acontecimentos carecem de uma espessura dramática mais considerável, sobretudo os embates entre mãe e filha. A trilha sonora possui um papel fundamental para compreendermos os laços da protagonista com o seu país de origem. É bem bonita a cena do namorado, depois da confissão de ignorância quanto ao rock and roll de sua preferência, entoar um samba famoso, oferecendo à Jojo um traço fundamental de sua raiz.
Deslembro perde pontos justamente por não conseguir costurar devidamente todos os seus elementos, deixando alguns deles a mercê da frugalidade. Ainda assim, é uma realização delicada, que conta com um ótimo desempenho do elenco, mais uma vez, com destaque à Jeanne Boudier, que dá conta da responsabilidade recaída sobre seus ombros. Concomitantemente ao crescimento físico e emocional de Joana, à perda da virgindade, aos primeiros impulsos transgressores, remonta-se ao fim dos anos 70 competentemente. Preciosidades como as interações da estreante com a veterana Eliane Giardini, intérprete de sua avó paterna, portanto, mãe enlutada que não recebeu o corpo do filho para despedir-se, ou o brevíssimo desabafo do personagem vivido por Marcio Vito, se encarregam de demonstrar um saudosismo melancólico, de trazer à tona, para além das conversas expositivas, as memórias dolorosas de um tempo em que a liberdade de expressão era reprimida com brutalidade. A despeito da irregularidade, o longa-metragem é bonito e terno.
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