Sinopse
Aos 11 anos, Ana viaja para o funeral da avó no interior da região Sul do Brasil na época do Carnaval. À noite ela acredita que enxergou a fantasma da falecida dentro da casa. E a partir da visão ela descobre um mundo fantástico.
Crítica
Protagonista de Despedida, Ana (Anaís Grala Wegner) é a mais nova integrante de um cânone feito de meninas que desbravam mundos fantásticos como forma lúdica de acertar as contas com a realidade. Por conta da morte da avó, ela volta à casa onde sua mãe nasceu e se depara com lendas sobre bruxas e seres bizarros, algo comum em localidades interioranas. Aos poucos, a dimensão lendária contamina a experiência diária dessa garota que passa a conviver com aparições fantasmagóricas, seres encantados da floresta e outros elementos que rompem com a dureza da realidade. Nesse sentido, Ana se assemelha a Dorothy de O Mágico de Oz (1939), a Chihiro de A Viagem de Chihiro (2001), a Ofélia de O Labirinto do Fauno (2006) e, buscando um exemplo mais recente, a Nelly de Pequena Mamãe (2021). Claro, essas aventureiras carregam algo de Alice, a que mergulhou no País das Maravilhas – a aqui o paralelo é escancarado, pois Ana chega a olhar por um buraco evidentemente alusivo ao famigerado da Toca do Coelho. A pequena empreende uma jornada pelos recantos obscuros de sua história familiar que conta com silêncios e não ditos. Sua mãe, Inês (Patrícia Soso), parece meio entorpecida pela perda, mas não necessariamente enlutada. E isso se explica pela mágoa guardada da falecida, algo que será resolvido apenas quando monstros e outras figuras míticas revelarem suas raízes e porquês.
Os diretores Vinícius Lopes e Luciana Mazeto embalam esses problemas e tensões de ordem familiar numa narrativa caracterizada pela predominância de aspectos lúdicos. No entanto, não o fazem de modo óbvio, ou seja, não ficam explicando didaticamente as possíveis equivalências e correspondências ao longo do desenvolvimento. Assim, nos deixam tão no escuro quanto a menina que pretende desatar os nós sobrenaturais sem saber que com isso chegará aos termos vitais da própria linhagem. Portanto, é apenas próximo do encerramento que descobriremos a real função do cachorro que espreita os sonhos acordados da protagonista como uma presença ameaçadora; o que significa a criatura sem rosto que se pronuncia por meio de sons guturais; a que se refere o status de soberana da floresta; e os motivos que levam ao retorno do fantasma de sua recém-falecida avó. O roteiro é habilidoso na costura desses mistérios que ora parecem simples, ora desviam da suposta simplicidade por conta de detalhes que embaralham as obviedades. Depois dos primeiros minutos, em que o desempenho dos atores parece um pouco engessado demais, esse estranhamento se esvai, pois compreendemos: estamos diante de uma produção que busca inspiração nos contos de fadas e, por consequência, utiliza arquétipos propositalmente marcados. Além do mais, a nossa percepção é sempre filtrada pelo olhar infantil da menina Ana.
Justamente, a perspectiva de Ana é fundamental em Despedida. Bem menos pesarosa do que a sua equivalente de Pequena Mamãe – que também se desloca ao campo após a morte da avó –, Ana está mais interessada em desvendar um mundo assombroso que se descortina diante de seu entendimento e sua imaginação. As iniciativas mesquinhas da tia-avó Agnes (Sandra Dani) são suficientes para ela ser compreendida como malfeitora, mais que isso, com um quê de bruxa – e a caracterização é fundamental para essa leitura. A aparente apatia da mãe é encarada por Ana como estado de vulnerabilidade que a torna uma vítima a ser salva das garras da vilã – e essa sensação é condizente com o clímax que revela a natureza real dessa condição de “refém”. Os primos macabros, as conversas em linguagem de pássaros, os diálogos com as marionetes e até mesmo a cena com as bonecas animadas em stop-motion dão conta de um peculiar universo brincante que tem contornos terríficos. Também recorrendo a uma tradição, a das histórias infantis com toques de horror, os realizadores tratam com inteligência a sensibilidade da protagonista diante de fatos comuns que a ela parecem tão complexos e amedrontadores quanto os monstros e outras criaturas próprias aos sonhos que não deveriam se materializar. E alguns ajustes finos na correlação dos temas poderiam fazer o filme ser ainda mais impactante.
A presença da família negra ameaçada de despejo é um desses elementos subaproveitados em Despedida. Ela poderia servir para ampliar a vilania de Agnes ou diversificar o imaginário relativo a crenças e demais aspectos culturais. Tanto que a coroação da menina no encerramento nada mais é do que a representação simbólica do conteúdo do testamento de Alma (Ida Celina). O medo poderia ser um pouco melhor elaborado com a utilização dos elementos do terror. No entanto, essas fragilidades não comprometem significativamente o resultado. E, justiça seja feita, um dos componentes mais consistentes do filme é a direção de arte assinada por Gabriela Burck, cuja inventividade é essencial à dimensão lúdica, centro nervoso do filme. Os cineastas enfatizam a coragem da menina diante dos desafios impostos pela bagagem familiar à qual tem acesso por meio da fantasia (seria factual o espetacular?). A pequena Anaís Grala Wegner interpreta muito bem a doce protagonista dessa fábula que perde oportunidades pontuais para ser ainda mais envolvente, mas que, ainda assim, engaja o espectador ao oferecer-lhe acesso à elaboração infantil de problemas que fogem à sua compreensão. Pouco importa se as criaturas e as demandas mágicas existem concretamente, assim como é duvidosa a aventura extraordinária de Dorothy pelas maravilhas do mundo regido pelo Mágico de Oz. Que ótimo, afinal de contas nem tudo precisa ser esclarecido, pois estamos no rico reino das fábulas.
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