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Sinopse

Veteranos negros da Guerra do Vietnã retornam aos campos de batalha em busca dos restos mortais de seu antigo líder. Também estão à procura de um tesouro. No caminho, eles testemunham os horrores deixados para trás.

Crítica

As guerras nunca acabam, mesmo após os armistícios sacramentados pelos apertos de mãos, às vezes, dos mandatários que as declararam. Essa constatação é um lembrete constante na poderosa construção inicial de Destacamento Blood. Nela, novamente o cineasta Spike Lee recorre à realidade para substanciar a ficção, no sentido de compreender algo tão devastador quanto esse combate brutal. E o artista norte-americano busca com propriedade exemplos que sustentam o pungente discurso antimilitarista, ora sutil em suas observações de sociedades cunhadas com a liga humana do sofrimento, ora incisivo nas colocações que atribuem aos Estados Unidos a vilania. Sim, a terra do Tio Sam, especialmente a sanha expansionista de seus governantes, é entendida como uma doença capaz de alastrar-se, adaptando-se a fim de dizimar literal ou metaforicamente falando. Cinco ex-combatentes negros decidem voltar ao Vietnã onde foram utilizados como bucha de canhão, a fim de resgatar os restos mortais de um colega e apropriar-se do tesouro em ouro enterrado antigamente.

Esses homens não superam o conflito. Nunca o conseguirão. De positivo residual, a irmandade que os une, a noção de agrupamento da qual se valem para enfrentar com mais possibilidades de vitória tanto o estrangeiro desenhado como inimigo quanto a dor que causa turbulências nessa missão de alforriar-se das dívidas com o passado. Os trajetos e as nódoas são distintos. Mas, por onde caminham, esses senhores encontram estilhaços, vide o menino aleijado que causa ojeriza num deles e os indícios de que a dominação estadunidense foi bem-sucedida, talvez não belicamente, mas ideologicamente. O simples transitar dos “turistas” pelas ruas do país outrora entendido como um território hostil deixa isso claro. McDonalds, KFC e outras franquias causam ali uma despersonalização sintomática. Um deles chega a mencionar essa ironia de forma melancólica, apontando para o capitalismo como a nova arma de destruição em massa por meio da qual o seu país invade e conquista. Sinal de uma compreensão maior, a utilização do banner de Apocalypse Now (1979) para ornamentar a festa.

Durante todo esse preâmbulo que antecede a entrada na selva, Destacamento Blood demonstra incisividade ao diagnosticar um ímpeto capaz de ressignificar signos de sofrimento e transformá-los em fetiche. Desde o princípio, entre os membros dessa fraternidade se destaca Paul (Delroy Lindo), aquele que parece num constante estado febril ocasionado por contradições violentas. Seu escancarado apoio a um extremista como Donald Trump, com direito a utilização do boné estampando o slogan do republicano, “Make America Great Again”, é o combustível que mantém crepitando o substrato político. Porém, Lee não o atira canhestramente à cova dos leões, evitando desenhá-lo como vilão por se voltar contra a causa. A desilusão desse ex-soldado com décadas de exclusão, além do tratamento recebido durante a guerra por ser negro, o fizeram desconectar-se da fraternidade e da solidariedade. Assim, destroçado por um sem número de agressões à sua subjetividade, adere facilmente ao discurso de um sujeito que profere impropérios supostamente reformistas. Paul não é inocente, mas tampouco tão culpado. E Delroy Lindo apresenta um desempenho brilhante como esse homem.

Ainda no que diz respeito à radiografia dos Estados Unidos atuais como os verdadeiros inimigos, Spike Lee coloca nessa equação uma rádio vietnamita que mandava aos soldados negros mensagens durante a guerra. Estilizada, uma narradora oriental se dirige diretamente aos militares, expondo a ferida racial capaz de tornar irmãos os integrantes dos lados entendidos como antagônicos. Em Destacamento Blood, o ontem aparece numa janela quadrada, enquanto o hoje surge simbolicamente com horizontes expandidos. Também chama a atenção a opção por ter Delroy Lindo, Isiah Whitlock Jr., Clarke Peters e Norm Lewis vivendo as suas versões jovens e maduras, com isso fortificando a ponte entre passado e presente. Chadwick Boseman, o amigo que tombou em circunstâncias desconhecidas, é um símbolo, sujeito entendido como modelo de retidão a ser seguido. Sua ossada e o ouro enterrado são dois McGuffin muito bem utilizados pelo diretor como motrizes.

Voltando ao diálogo aberto com Apocalypse Now, Paul é uma figura análoga ao Kurtz vivido por Marlon Brando na obra-prima de Francis Ford Coppola. Os desvarios dos dois são provas do potencial alienante e convulsivo da beligerância. Spike Lee igualmente mostra uma viagem transformadora através das veias dessa circunstância abominável, mas aqui se vale de camadas retrospectivas para ressaltar efeito-colaterais permanentes. Nos dois filmes, após um evento devastador de diversas camadas, personagens conceituam aquela realidade torpe. No longa de Coppola, alguém diz “O horror, o horror”. Já em Destacamento Blood, um sujeito afirma “Loucura, Loucura”. E a Cavalgada das Valquírias ressoa em ambas as produções. Pena que o miolo desta trama seja marcado por, pelo menos, duas coincidências um tanto forçadas. A primeira delas, a forma como o tesouro é localizado. A segunda, o conveniente encontro de especialistas, quando minas terrestres são tidas como perigos ativos. O conjunto perde um pouco da impressionante textura política ao deter-se na aventura, no estrépito causado pela erupção das discrepâncias.

Mesmo atenuando, da metade em diante, a mirada frontal vista, por exemplo, no apontamento de Donald Trump como um racista que perpetua preceitos da supremacista organização Ku Klux Klan, Spike Lee faz de Destacamento Blood uma reflexão forte sobre a utilização dos corpos negros como capital militar. Num de seus brilhantes momentos ao longo da trama, Paul diz “lutávamos por direitos que não tínhamos”, demonstrando um derradeiro lampejo de clareza em meio ao inexorável caos que o direciona ao abismo. A impossibilidade da conciliação entre esse homem e seu filho, David (Jonathan Majors), é outro resultado de séculos de segregação, de articulações do status quo para separar aqueles que unidos poderiam encabeçar revoluções reais. Não à toa, diante das heranças nefastas, o final, embora doloroso, é otimista pela apresentação da nesga de luminosidade familiar. Nesse sentido, igualmente é decisiva a articulação do espólio para o bem de causas, como queria o soldado mitificado cujo discurso foi calado pelo acidente de percurso apenas possível porque o medo alimentou de modo equivalente os amigos e os inimigos de arma em punho.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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