Deus é Mulher e seu Nome é Petúnia
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Teona Strugar Mitevska
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Gospod postoi, imeto i' e Petrunija
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2019
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Macedônia / Bélgica / Eslovênia / Croácia / França
Crítica
Leitores
Sinopse
Em Stip, pequena cidade na Macedônia, é uma tradição anual que o padre jogue uma cruz de maneira no rio. Dezenas de homens mergulham atrás dela, visando sorte e prosperidade. Petúnia, no entanto, chega antes, suscitando a revolta dos que não entendem como uma mulher ousa participar do ritual. Mas ela se mantém firme, pois conseguiu sua cruz e não irá desistir.
Crítica
Petúnia está cansada. Petúnia está deitada, e tudo o que deseja é permanecer embaixo das cobertas. Petúnia não quer enfrentar os pais, os vizinhos, a vida lá fora. Petúnia não quer ir para mais uma entrevista de emprego, que vise uma posição muito abaixo da sua qualificação, e que mesmo assim não deverá lhe dar o valor devido. Petúnia não quer se humilhar, não quer implorar, não quer se sujeitar à avaliação dos outros. Petúnia não quer ser incomodada no caminho até à fábrica, quando é perseguida pela própria mãe, que insiste em conselhos inapropriados de última hora, e muito menos quando está de volta, cerca por homens grosseiros preocupados muito mais com as regras e tradições do que com o bem-estar de quem passa ao lado deles. Petúnia não se importa com o que os outros podem pensar, e por isso, quando vê a oportunidade de fazer algo inesperado, simplesmente se atira. Afinal, se Deus é Mulher e Seu Nome é Petúnia, ela não pode estar errada, não é mesmo?
Inspirada em um evento verídico, a diretora e roteirista macedoniense Teona Struga Mitevska partiu para a ficção para tecer um olhar crítico e apurado sobre uma realidade que até hoje perturba e incomoda. Em diversas cidades e pequenas comunidades por todo o país, sempre no dia 19 de janeiro, o feriado da Epifania (batismo de Cristo) é celebrado em rios e córregos da seguinte forma: uma cruz é atirada na água, e à pessoa que for capaz de pegá-la estará reservada boa sorte e prosperidade para todo o ano seguinte. Quem mais do que Petúnia precisa de bons agouros nos meses que virão? No entanto, há um problema aí. Quando se dia “a pessoa que conseguir pegar a cruz”, lê-se “o homem que conseguir pegar a cruz”. Sim, pois esse é um mérito – e um direito – reservado apenas à ala masculina da nação. Às mulheres, resta apenas observar e aplaudir. Até que uma delas decida subverter essa ordem. E o nome dela, afinal, é Petúnia.
Petúnia nada faz de caso pensado. Apenas reage ao seu instinto. A situação se apresenta em sua frente, e ela decide seguir sua vontade. No entanto, sabe bem o preço de cada ação. Por isso, tem ciência também pelo que está lutando, e o que estão lhe exigindo para que abra mão. A cruz, em si, pouco importa. Nunca foi de dar atenção à religião, e bem sabe ela que todas as suas rezas e de sua família pouco ajudaram para mudar o rumo dos acontecimentos até ali. Sua birra, ou insistência – ou melhor ainda: resistência – se dá pelo gesto. Tem dois braços e duas pernas, uma cabeça pensante e uma respiração que a mantém viva da mesma forma que qualquer um dos homens que entraram na água e, sem tanta sorte – ou seria habilidade? – não conseguiram igualar o seu feito. Agora a cruz está com ela. Mas, mais do que isso, o que quer é o direito de tê-la. Tanto para guardá-la, como também para dela se desfazer, se assim desejar. Não é o objeto, portanto, e, sim, o princípio que motiva esse debate.
Antes disso, é bom estar atento ao universo que circunda nossa protagonista até o momento de virada. Mora com os pais – uma mãe autoritária e controladora, um pai submisso e ausente – e a única amiga, com quem imagina poder contar, está mais preocupada com frivolidades do que em fazer, de fato, diferença. Ao se apresentar para um possível trabalho, mais uma tentativa dentre tantas as quais tem se sujeitado ao longo dos anos, humilhação e assédio são moedas comuns, com as quais está acostumada. Seria de se esperar que os céus se iluminem, que os mares se abram, e que um príncipe lhe chegue sorrindo, montado num cavalo branco. Mas isso só acontece nos contos de fadas – ou na imaginação dos mais fervorosos. Petúnia, no entanto, não é apenas uma coisa ou outra, boa ou má, santa ou puta. É tudo isso, e um pouco mais. Assim como qualquer um na audiência. Essa sua miríade, portanto, não apenas a faz humana, mas também digna de ser observada com cuidado.
Tentam calá-la. Se esforçam para desmoralizá-la. Gritam, ameaçam, esperneiam. A incompreensão começa em casa, vai para as ruas e se espalha por um país. A imprensa tenta cumprir sua missão, com um olho na urgência da notícia, e outro no sensacionalismo do episódio. A polícia a protege por obrigação, assim como a repudia nos bastidores. Tanto um, quanto o outro, no entanto, possui suas brechas – o cinegrafista que se revolta, o oficial que se compadece. À Petúnia, portanto, cabe estar com os ouvidos – e todos os seus demais sentidos – bem atentos. Ela fez muito pouco, quase nada. Mas esse mínimo acabará por fazer significado num momento em que mais nada importa. Seu exemplo é que conta. É este que fará barulho, aquele que irá perdurar e provocar mudanças. Não hoje, talvez ainda não amanhã. Mas com certeza, um passo foi dado. Aqui a discussão começa, pois, quando menos se espera, um mundo inteiro poderá ser acordado. Com tudo de ruim – e de bom – que isso implica.
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