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Crítica


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Sinopse

Sete artistas e um médico, todos eles convivendo com o vírus HIV, narram suas experiências pessoais, desde a descoberta do diagnóstico até o enfrentamento aos preconceitos e à desinformação quanto a pessoas soropositivas.

Crítica

O título deste documentário possui forte impacto por si mesmo. O fato de algumas pessoas considerarem ofensiva a associação entre Deus e a doença (tive essa experiência ao descrever para familiares o filme que estava vendo) diz muito sobre a percepção da AIDS como algo depreciativo, desrespeitoso, e certamente incômodo de abordar. A ligação entre núcleos de aparência sagrada e o profana se encontra na sequência inicial, quando o áudio de reportagens de televisão de décadas atrás apresentavam a “doença da promiscuidade”, relacionando-a em particular a homens gays. A escolha pelo título, retirado de um poema devidamente contextualizado dentro da trama, confronta espectadores aos moralismos da sorologia. Seria tão perturbador sugerir que Deus tem diabetes, ou hipertensão? Com três palavras, os diretores Gustavo Vinagre e Fábio Leal lembram que o vírus, e a eventual doença decorrente dele, ainda são considerados culpa do indivíduo e punição por sua sexualidade ou identidade de gênero, ao contrário de outros quadros médicos. Para além da abordagem histórica (como havia feito Carta para Além dos Muros, 2019) ou médica, o filme tem o mérito de propor uma discussão de viés moral. 

Esteticamente, os diretores conectam a soropositividade à vida. O aspecto soturno e piedoso do jornalismo alarmante se substitui a conversas despojadas com sete artistas e um médico, seja dentro de suas casas, sentados na rede ou pelas ruas da cidade. Vinagre e Leal conseguem deixar os protagonistas muito confortáveis para uma fala amigável, posterior a momentos de crise - trata-se de um painel de indivíduos saudáveis, convivendo com o HIV de modo pacífico. Eles já tiveram dificuldades a respeito, porém encontram-se em períodos de estabilidade, quando podem afrontar o tabu pela naturalidade com que afirmam seus corpos e ideias. O grupo se torna veículo de vida pela premissa da criação, algo apropriado aos deuses e aos artistas: são eles que dão origem a algo novo, belo e instigante. Descobrimos as intervenções de uma jovem mulher soropositiva (a única do grupo), a dança nua de um rapaz na cobertura de um prédio em São Paulo, a apresentação de um artista envolvendo o próprio sangue, e o diálogo proposto por um ativista aos passantes na rua. Ao invés de se esconderem, ou se preservarem com pudor, eles o expõem e dão origem a novas obras a partir disso. O corpo se transforma em tela capaz de originar intervenções ricas em plasticidade e significados.

A exemplo de A Rosa Azul de Novalis (2018), Gustavo Vinagre encontra uma maneira interessante de romper com a pretensa objetividade de documentários de viés informativo, colocando-se em cena pela voz. Ainda que fora das imagens, sabemos que ele e Leal se encontram ao lado dos entrevistados, sentados no sofá e dentro das casas, em posição cômoda. Descobrimos as perguntas propostas e o aspecto empático da interação entre diretores e artistas. O espaço hierárquico que costuma separar o filmador e o filmado, assim como as relações de poder decorrentes desta estrutura, se diluem pelas falas de igual para igual, diante de uma dupla de cineastas que também expuseram, em obras anteriores, seus corpos em propósito de confissão e ferramenta artística. Em outras palavras, eles dialogam a partir dos mesmos princípios: os personagens nunca se convertem em “especialistas" do HIV, refletindo a partir de seus pontos de vista, enquanto os diretores deixam de representar intermediários humildes que apenas abrem a câmera à opinião alheia. A escolha de ângulos, a iluminação naturalista nas casas e a coreografia da imagem junto ao dançarino e ao performer reforçam o conceito de autoria participativa. Cinema, dança, poesia e ativismo se unem num movimento único.

Em contrapartida, é uma pena que pessoas de experiências tão ricas sejam restritas à discussão monotemática da sorologia e de sua arte. O princípio do realismo poderia ser expandido ao cotidiano, à relação com o trabalho, com o sexo, o namoro. Mais do que falarem, eles poderiam comprovar tal naturalidade em sua rotina, permitindo maior identificação com suas subjetividades. Talvez o próximo passo fosse enxergar nos artistas algo além de seu trabalho fundamental com a informação a respeito do HIV. Algum deles levou namorados às performances? Cozinhou sua panela de comida enquanto falava sobre a soropositividade com os pais ao lado? O médico menciona a vivência aberta de sua condição com os colegas na empresa, mas estes relatos permanecem em voz indireta. Por esta estrutura, os indivíduos se limitam à condição de exemplos de uma causa, discursando em uníssono, embora certamente lidem com seu corpo e sua saúde de maneiras distintas. Sem menção aos seus nomes antes dos créditos finais, ainda são relegados a certa postura de resguardo e discrição.

Além disso, a inclusão de um novo (e excelente) personagem a 60 minutos de narrativa provoca surpresa (por que separá-lo dos outros, cujas suas trajetórias eram narradas em montagem paralela?), e o longo letreiro sobre a situação do Brasil atual, ainda que relevante politicamente, transmite algo que a imagem não foi capaz de demonstrar por si própria - trata-se de uma nota de rodapé importante demais para ser anexada numa explicação rápida nos minutos finais. Ressalvas à parte, Deus Tem AIDS desempenha papel fundamental dentro da cinematografia brasileira (e queer, em particular) ao abordar seu tema principal por uma perspectiva solar e acolhedora. Diversos artistas traduziram a seriedade da discussão em imagens fixas, escuras, sobre fundos pretos, em falas de uma seriedade sepulcral. Leal e Vinagre retiram do HIV a impressão de uma cautionary tale, do tipo que diria ao espectador para ter medo, se cuidar, usar camisinha etc. Eles se encontram em momento posterior, naturalizando os corpos e o afeto de pessoas soropositivas. As cenas do ativista dialogando com passantes nas ruas e com o poeta lendo o texto “Deus Tem AIDS” na tela do celular, dentro de casa, são repletas de carinho. A imagem se aproxima dos indivíduos pela perspectiva do abraço.

Filme visto online no 10º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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