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Se a cinefilia fosse uma religião (e para muitos ela é), um dos pecados capitais seria mexer com clássicos. Mais reprovável que recontar histórias consideradas obras-primas, porém, é tentar criar algo maior que elas. É fato que nenhum longa de terror, por mais que tenha qualidade técnica e artística, jamais se aproximou da força de O Exorcista (1973), de William Friedkin, considerado por muitos críticos e pesquisadores o melhor filme do gênero de todos os tempos. É inevitável que obras com a mesma temática sofram comparações, embora realizadas em condições bem diferentes. Diário de Um Exorcista: Zero, dirigido, roteirizado, produzido e protagonizado por Renato Siqueira, pretende ser um desses exemplares. Levado a cabo de maneira independente, mas distribuído pela Europa Filmes, chamou atenção por entrar no catálogo da plataforma streaming Netflix. Pena que essa seja talvez a sua única conquista.
Não é a primeira vez que um longa de horror nacional dá as caras nesse novo modo de ver filmes. Porto dos Mortos (2010), do gaúcho Davi de Oliveira Pinheiro, marcou presença na lista. Porém, o material de divulgação de Diário de Um Exorcista: Zero deixou muitos fãs do gênero curiosos, com uma dose extra de esperança. A trama, baseada num livro sobre um dos mais importantes padres exorcistas da América Latina, o paulista Lucas Vidal, gira em torno das lembranças do sacerdote, após ser convidado por uma dupla de cineastas a contar suas experiências com o exorcismo. A cena de abertura faz jus à expectativa e apresenta efeitos especiais bem acabados. O que tira um pouco do ânimo é que a primeira “possuída” a aparecer repete o movimento que imortalizou a personagem Regan na famosa e copiada cena da escadaria no filme de Friedkin. É o primeiro de muitos clichês.
Não que investir em ângulos ou direção de arte com referências seja um ponto negativo, mas neste caso parece que os roteiristas (Siqueira assina com Luciano Milici) resolveram listar em forma de cenas todas as situações possíveis num filme de exorcismo. Para piorar, nem elenco e parte técnica seguram o espectador. Apesar do visível esforço dos atores, os diálogos genéricos fazem tudo desbancar ao dramalhão. A relutância do padre Lucas (Renato Siqueira) em admitir que sua irmã Paula (Cibelle Martin) está possuída é um corpo estranho dentro do longa. Como alguém que desde a sua primeira aparição fala com paixão da temática do exorcismo duvida que o diabo está no corpo de alguém? Essa é apenas uma das muitas confusões do roteiro, isso sem contar os erros de continuidade, visíveis inclusive na fotografia. A luz e as cores dos momentos de possessão são dotadas de um ar fantástico, mas um simples corte, dentro do mesmo ambiente, mostra a família da vítima iluminada de forma mais clara e realista.
A ideia é que Diário de Um Exorcista: Zero seja a primeira parte de uma trilogia. Os demais filmes já estão em processo de pré-produção. Impossível não lembrar de José Mojica Marins e suas três realizações sobre a saga de Zé do Caixão, cujo último capítulo, Encarnação do Demônio (2008) levou mais de 40 anos para acontecer. A diferença é que Mojica prezava o terror e o choque, enquanto Siqueira e sua turma intercalam cenas fortes bem feitas e sequências que parecem saídas de uma novela mexicana, com direito a um “paraíso” retratado como um daqueles quadros de gosto duvidoso, com arco-íris, passarinhos e muitas árvores. Para um filme de terror, uma cena assim é decepcionante. Deu saudade de Exorcismo Negro (1974), com Mojica e suas ousadias visuais.
Orçamento reduzido, pouca experiência em ficção dos produtores e um roteiro com falhas não são exclusividade dos exemplares nacionais. Há filmes de terror feitos em Hollywood simplesmente insuportáveis. Diário de Um Exorcista: Zero pode até ser uma boa iniciativa para uma maior parceria produtores de horror e grandes distribuidoras. Mas um país que presenteou o mundo com um personagem como Coffin Joe (como Zé do Caixão é chamado no exterior) e obras intensas como Mangue Negro (2008) de Rodrigo Aragão, fica complicado esperar pelos próximos filmes da trilogia sem ficar com um pé atrás. Os sustos de Siqueira são esporádicos e puramente visuais. Mexer com os pecados mais inconfessáveis já é outro nível que, por enquanto, o cineasta parece não querer chegar.
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