
Crítica
Leitores
Sinopse
Em Quatro Paredes, a jornalista japonesa Shiori Ito investiga sua própria agressão sexual, buscando processar um criminoso que é do alto escalão da burguesia. Sua busca se torna um caso marcante, expondo os sistemas judiciais e sociais ultrapassados do Japão. Documentário.
Crítica
A jornalista japonesa Shiori Itô foi violentada em 2015. Seu agressor é Noriyuki Yamaguchi, influente executivo de uma importante rede de televisão local que, ainda por cima, era amigo pessoal e biógrafo do primeiro-ministro do país. Portanto, ela tinha todos os motivos para engrossar as assustadoras estatísticas de silenciamento nipônico quando o assunto é crimes sexuais, afinal de contas está numa sociedade retrógrada quanto aos costumes e lutando contra um homem poderoso. Quatro Paredes é o título infelizmente genérico em português para esse filme que originalmente se chama Black Box Diaries (Diários da Caixa Preta, numa tradução literal). Ele apresenta não apenas a batalha individual da protagonista, mas também como essa luta reflete problemas maiores. Estamos diante de um documentário feito em primeira pessoa, escrito e dirigido pela própria vítima que, assim, controla todos os processos de como apresentar a sua história. Não deixa de ser um gesto de autonomia, uma vez que Shiori decide o quê e como exibir, quais pontos de vista a serem ressaltados e, principalmente, de que maneira elaborar cinematograficamente o próprio trauma. Tanto que ela cita várias vezes o nome de seu agressor, mas sintomaticamente evita mostrar o rosto do sujeito amparado pelas engrenagens de uma estrutura patriarcal que tende a presentear criminosos com impunidade e vítimas com mais dor.
Caso Quatro Paredes fosse feito por outra pessoa, seria questionável do ponto de vista ético essa superexposição da imagem da vítima e a preservação do rosto do agressor. Até mesmo porque, um dos pontos que o filme levanta é justamente como essa sociedade está organizada para estigmatizar mulheres que sofreram abusos sexuais, isso enquanto resguardam, de certa forma, a imagem dos homens (sobretudo quando eles têm influência pública). No entanto, a escolha pode ser lida de maneira totalmente diferente pelo fato de esse filme indicado ao Oscar 2025 ser dirigido por Shiori Itô, aquela que mais tende a sofrer diante do rosto foi Noriyuki Yamaguchi – uma vez que essa imagem traz à tona novamente as angústias do episódio que modificou negativamente a sua vida. Tanto que lá pela metade desse relato elaborado como denúncia, ela demonstra estar tensa pelo relance da testa de Yamaguchi, o que nos deixa claro: o vislumbre desse homem é um gatilho. Dito isso, o filme tem uma estrutura narrativa próxima do jornalismo, especialmente pela maneira como encadeia fatos e testemunhas, inserindo gradativamente evidências para construir um discurso capaz de trazer à tona as verdades negligenciadas pela polícia e tantas vezes pelo conivente sistema judiciário japonês. De toda forma, mesmo sem uma linguagem criativa/inventiva, o resultado dos esforços é eficiente, além de muito contundente.
Shiori Itô faz desse filme um prolongamento de sua batalha pública anteriormente registrada em livro. Com a indicação do longa-metragem ao Oscar 2025, provavelmente a visibilidade para seu caso deve ganhar um salto considerável. Mesmo que o cinema, a priori, não tenha qualquer responsabilidade de influenciar efetivamente a realidade, ele necessariamente se comunica com o seu tempo presente e, às vezes, é capaz de promover mudanças providenciais. Quatro Paredes tende, ao menos, a ajudar a tornar mais responsável o debate sobre as leis centenárias e obsoletas do Japão sobre violência sexual. Como pode um dos países mais avançados do mundo em termos tecnológicos, celebrado globalmente por sua sociedade educada e cordata, ainda ser tão obsoleto a respeito das garantias a segurança de mulheres que passaram por um trauma inominável como o estupro? Ainda que a realizadora não faça essa pergunta, ela fica implícita em meio à verdadeira jornada da vítima para conseguir alguma justiça e, quem sabe, quebrar esse ciclo de silenciamentos que funciona como um pacto para proteger bandidos. Para isso, Shiori se expõe diante da tela, compartilhando conosco os momentos dramáticos, as raras pausas descontraídas entre uma batalha e outra, as hesitações, os comentários maldosos na internet e, sua contraparte, ou seja, o acolhimento daqueles que tem o mínimo de dignidade.
Esse tom confessional de Quatro Paredes também está presente nas cartelas utilizadas para pontuar episódios importantes do processo de Shiori Itô. Elas não apenas informam a respeito dos acontecimentos, mas compartilham o quanto aquilo afeta a jornalista intimamente. Há muitos assuntos e recortes possíveis nesse documentário capaz de transitar entre o macro e o micro numa mesma sequência. Como, por exemplo, quando a protagonista desaba em lágrimas ao conseguir a autorização de uma testemunha humilde para utilizar as suas palavras no tribunal. Depois de tanto tempo em que apenas mulheres demonstravam sensibilidade à sua história – e o filme faz questão de sempre enfatizar os olhares pesarosos femininos em ocasiões públicas –, ela finalmente recebe apoio incondicional de um homem que coloca em risco o próprio emprego para ajudar a mudar as coisas. Então, ao mesmo tempo há essa conexão pessoal, a relação entre a vítima e a testemunha empática, mas também a ponta de esperança. Contrapondo isso, Shiori Itô mostra outro depoente masculino favorável, mas que chega a convidá-la para sair enquanto é perguntado sobre algo grave. Nesse ponto há a atitude individual do homem embriagado do outro lado da linha, mas também a triste perpetuação da mentalidade machista incapaz de se compadecer do sofrimento alheio sem procurar algumas brechas na vulnerabilidade da mulher.
Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)
- Confia: Sonho de Cria - 3 de março de 2025
- Oscar 2025 :: Gwyneth Paltrow outra vez? Como explicar a vitória de Mikey Madison? - 3 de março de 2025
- Temporada de Traição - 3 de março de 2025
Deixe um comentário