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Sinopse

Três amigos constróem um borboletário no jardim durante um quente mês de agosto. Aos poucos, descobrimos que eles são personagens de um filme realizado durante a pandemia de Covid-19, por uma equipe que não sabe muito bem onde pretende levar essa história.

Crítica

Um bom caminho para analisar este filme português se encontra no prisma dos “filmes de confinamento”. Durante a pandemia de Covid-19, diversos artistas reuniram amigos e familiares em casas isoladas e propuseram projetos inventivos, limitados em orçamento, cenários e personagens. Em certo grau, os curtas e longas obtidos dentro desta perspectiva buscaram uma forma e descolamento da realidade opressora através da comédia, da fantasia, da ficção científica, da distopia. O cinema se aproximou de um “brincar de cinema” caseiro, sem os trâmites burocráticos que levam pequenas produções a demorarem longos dez anos até a sua conclusão. Como resultado, chegam às telas de cinema em 2021 iniciativas surpreendentes, do tipo que jamais ocuparia as salas fora do contexto pandêmico - umas graves e alarmantes, outras, leves até demais. Diários de Otsoga (2021) pertence ao último grupo. Caso fosse assinado por um autor menor reconhecido, em épocas pré-pandêmicas, nunca circularia pelos festivais de Cannes, Karlovy Vary e Toronto. No entanto, obras são fruto de seu tempo, e o resultado teve o privilégio de chegar a tantos espectadores - como se esperaria, num mundo ideal, de todas as produções.

Inicialmente, a trama gira em torno de três amigos numa chácara. A temporalidade e as relações de causa de consequência são indefinidas: desconhecemos a vida deles fora deste espaço verde, ignoramos laços familiares e profissionais, enquanto a duração da estadia permanece um mistério. Eles dançam, bebem, se beijam, descansam. Seguindo o subgênero dos “filmes de férias”, ocupam um eterno presente, descolado propositadamente da vida lá fora. Nenhum amigo possui objetivos, limitando-se ao corpo disponível, que perambula entre os cômodos e a sala, entre a cozinha e o jardim. O terço inicial provoca o espectador pela ausência completa de conflitos e de linha narrativa particular. As cenas poderiam ser ordenadas em outra ordem, sem prejuízo à compreensão, e teriam uma aparência de vídeo caseiro, caso os enquadramentos, a luz e a textura da película não apontassem a uma produção profissional e bem cuidada. Eventuais focos de luz laterais, e filtros se alternando entre o verde, azul e vermelho profundos remetem a um aspecto de artificialidade assumida - um aceno ao realismo fantástico. Preparamo-nos para algum grande acontecimento, um ponto de ruptura capaz de fazer a trama avançar.

Este ponto chega com a revelação de que Crista (Crista Alfaiate), Carloto (Carloto Cotta) e João (João Nunes Monteiro) constituem personagens dentro de uma trama pandêmica. Os diretores Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro revelam-se numa versão fictícia de si próprios, conversando com a equipe. Descobre-se então que o passeio seria a história-dentro-da-história, ou seja, a ficção no interior de um mockumentary. O falso making of imagina um conflito para os autores-personagens: ninguém sabe ao certo os rumos que a obra deveria ter, despertando o tédio dos atores e a incompreensão da equipe, esperando por orientações precisas. A certo ponto, Gomes chega a deixar que seus personagens criem cenas sozinhos, enquanto resolve questões de saúde. “Isso que é gastar película!”, disparam num diálogo, antes de se divertirem numa banheira de espuma. O caráter de criação coletiva, onde os pontos de vista díspares são incorporados, serve à aparência de brainstorming. Aos atores, resta a oportunidade de brincarem de atuar, ignorando ordens do diretor. Já os cineastas podem encarnar a versão estereotipada do gênio cuja criação ocorre num fluxo inexplicável, um gesto abrupto da inspiração ao invés de um trabalho profissional. Estes artistas experientes imaginam um faz de conta em que seriam amadores.

Em termos de estrutura, a traquinagem de Diários de Otsoga se encontra no fato de ser narrado de trás para frente, ou seja, dos últimos dias até o primeiro dia do mês. Isso justifica o título (otsoga é o inverso de “agosto”, assim como “tsugua" inverte august no nome em inglês), e permite que a metalinguagem represente uma revelação dentro da trama, algo que a montagem linear teria eliminado. Gomes surge em cena, explicando aos colegas os objetivos dessa estrutura: nas palavras dele, a cronologia reversa impediria preocupações do espectador quanto aos rumos dos personagens. Partindo do final, já sabemos o que lhes acontecerá - ainda que, neste contexto de lazer e ócio confortável, haja poucas preocupações de fato quanto ao destino de Crista, Carloto e João. O roteiro se diverte ao repetir diálogos na boca de atores diferentes: inicialmente, é João quem “detesta festas”, por se aborrecer enquanto tenta conversar com pessoas sob o som forte da música. Depois, Carloto oferece sua versão da frase, e em seguida, o amigo retoma a fala. O jogo de cena constitui o meio e a finalidade do filme tão agradável quanto superficial. Ao término da projeção, é difícil imaginar que muitas cenas e discussões tenham marcado o espectador. Para o bem ou para o mal, remete a um exercício de faculdade de cinema, um acampamento de artistas. Ao menos, ele nunca se esconde por trás de uma aparência complexa: o espectador é convidado, na condição de cúmplice, a passar férias com os colegas no interior. As promessas param por aí.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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