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Sinopse

Violinista de sucesso, Paul Körner se apaixona por um de seus alunos. Vislumbres do passado mostram quando ele tomou ciência de sua orientação sexual, as tentativas de rechaçá-la e a posterior compreensão.

Crítica

Uma curiosidade história que pouca gente comenta é o fato de que, durante a Primeira Guerra Mundial, os esforços bélicos foram tamanho em diversos países europeus que muitas das práticas que até então eram válidas entraram em desuso. Entre essas, algumas tornaram a situação geral pior, mas outras acabaram servindo para outro tipo de retorno positivo. Como o caso da censura na Alemanha, por exemplo, que deixou de ser praticada em larga escala pela simples falta de quem se dispusesse a exercer esse tipo de controle. Quem soube aproveitar de imediato tal consequência foram os cineastas, que trataram rapidamente de introduzir em suas obras temas considerados tabus, como a homossexualidade. É por causa dessa condição particular que um filme como Diferente dos Outros, de Richard Oswald, pode ser feito. E, com isso, acabou entrando para a história como a primeira produção cinematográfica a abordar o tema de forma explícita e, principalmente, através de um olhar positivo.

Tal qual foi concebido, Diferente dos Outros não mais existe. Com mais de um século de vida, muitos dos fotogramas originais já foram perdidos, extraviados ou, pior, deteriorados pelo tempo. A cópia que existe atualmente tem cerca de 50 minutos de duração e possui apenas trechos conservados. O resto se apresenta através de (muitas) cartelas de texto e stills (fotos) que conseguiram ser recuperados. Ainda que seja um óbvio – e importante – representante do cinema mudo (afinal, na época o cinema sonoro era ainda inviável), sua narrativa é fluida, a qual se pode acompanhar sem maiores esforços. E isso se deve a dois elementos bastante simples. O primeiro, é o caráter da sua realização, que apela para um didatismo evidente, uma vez que seu interesse maior era servir como ferramenta de conscientização para seus espectadores. Já o segundo eram os talentos envolvidos, como o grande Conrad Veidt como protagonista, e o austro-húngaro Oswald, que assumiu também o roteiro e o colocou a serviço de um olhar social, acima do mero entretenimento.

O lado ficcional do enredo, responsabilidade maior de Oswald, fala de um grande violinista, Paul Körner (Veidt, presente em praticamente todas as cenas, perfeito com seus olhos expressivos e postura austera), que ao ser procurado por um admirador, aceita dar aulas de música ao rapaz. A questão é que Kurt Sivers (Fritz Schulz) está mais interessado no tutor do que no violino, e a admiração que sente logo se expressa como amor declarado. A família do jovem intervém, os dois acabam se separando, mas não antes de Paul ficar amigo da irmã do ex-aluno, que também se declara a ele. Mas o que atormenta de verdade o protagonista é a presença de um vigarista, Franz Bollek (Reinhold Schünzel, de Interlúdio, 1946), que após presenciar um passeio dos dois amantes pelo parque, passa a chantagear o artista. Acontece que isso só era possível porque, na época, era vigente ainda no país o parágrafo 175 do Código Penal, que previa penas de mais de cinco anos de prisão a qualquer um que fosse acusado de ser homossexual, que pela lei era descrito como “uma atração antinatural entre homens”. E é neste ponto em que Diferente dos Outros realmente se dispunha a fazer a diferença, tal qual afirma no título.

O filme só foi possível graças à aliança do cineasta com o sexólogo e psiquiatra dr. Magnus Hirschfeld (1868-1935) – que, inclusive, assina como co-roteirista e chega a aparecer em cena como ator. Ele afirmava que homossexuais constituíam um biológico “terceiro sexo”, e que se tratava de uma minoria social sujeita injustamente à discriminação, uma vez que sua manifestação era tão natural quanto a cor dos olhos, do cabelo ou a altura de qualquer pessoa. Quando Else (Anita Berber), a irmã de Kurt, se revela apaixonada por Paul, ele não a repudia e nem tenta enganá-la de outra forma. O que faz é contar a ela a verdade a seu respeito, e para ajudar no seu processo de entendimento, a leva a uma palestra do próprio dr. Hirschfield. Nestes momentos Diferente dos Outros adquire um caráter documental, com exposição de fotos e relatos de homens e mulheres que convivem em paz com sua homossexualidade, assim como outros que demonstram características do sexo oposto, sem, no entanto, se interessarem sexualmente por pessoas do mesmo sexo.

Distinções entre feminilidade, masculinidade e homossexualidade são expostas de maneira bastante elucidativa, e se ainda hoje elas causam confusão, é de se imaginar como essa verdadeira aula deve ter soado há mais de cem anos. Ainda que alguns termos – como associar o fato de ser gay a um destino infeliz, ou incapaz de lidar com o matrimônio – possam se fazer presentes, outros se mostram curiosamente apropriados, como o uso de “orientação” ao invés de “opção” sexual, por exemplo – afinal, essa é uma confusão que muita gente ainda hoje se mostra vítima. Muito à frente do seu tempo (um ano após ser lançado chegou a ser banido, o que explica não ter sido preservado na íntegra), tem-se aqui um filme que resistiu bem o passar dos anos e continua válido e atual, pois os problemas que relatam não apenas permanecem urgentes, como a desinformação com a qual lida segue, tristemente, em voga.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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