Crítica
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Sinopse
Dilili está investigando uma série de sequestros de jovens garotas que está assolando a Paris da Belle Epoque. Ao se deparar com uma série de personagens misteriosos, irá descobrir que cada um deles irá lhe ajudar com pistas que servirão em sua busca.
Crítica
A primeira cena desta animação franco-belga constitui provavelmente o momento mais sagaz do filme: uma garotinha prepara comida numa floresta, recebendo ordens da mãe numa língua estrangeira, não traduzida. Eles se encontram em frente a uma choupana simples, vestindo roupas humildes. Através de um zoom out da câmera, descobrimos que existe uma plateia atrás deles: trata-se de uma encenação. Franceses ricos observam a demonstração fetichista de uma cultura exótica ao lado da torre Eiffel, como parte de uma diversão passageira. Um garoto branco se aproxima da garotinha Dilili e pergunta, em linguagem rudimentar, se ela compreende a língua francesa. Ela responde em francês exemplar, bem articulado e com bom vocabulário. “Aparentemente, falo melhor do que você”, responde.
O projeto se abre sobre uma crítica forte ao olhar estrangeiro e à fetichização das culturas distintas. Ao longo de toda a trama, a menina será considerada clara demais para uma pessoa negra, e escura demais para uma branca. Ela fala um francês bom demais para uma estrangeira, mas possui uma aparência singular demais para uma moradora local. Dilili, jovem da Nova Caledônia que se desloca a esmo pela cidade, tendo como família uma aristocrata generosa, não pertence àquele lugar. Sua descoberta da “França profunda” ocorre pelo contato com a ciência e as artes, tanto de franceses quanto de estrangeiros, que circularam por Paris no início do século XX. Assim, Louise Michel, Erik Satie, Picasso, Pierre Curie e Marie Curie, Emma Calvé, Colette, Toulouse-Lautrec, Santos Dumont, Marcel Proust, Rodin, Zola, Camille Claudel e muitos outros se tornam personagens dispostos a ajudar Dilili a solucionar o caso de garotinhas sendo sequestradas. Na verdade, eles ajudam Dilili a salvar a si mesma, a acreditar ser digna daquele entorno. Todos afirmam que ela pode cantar, criar e escrever tão bem quanto eles. As maiores personalidades da Belle Époque se reúnem para empoderar uma garotinha negra.
O estilo de animação proposto pelo diretor Michel Ocelot soa curioso na época de tantas tecnologias realistas e expressivas. O cineasta prefere os desenhos de aparência manual, feitos à mão, ressaltando os movimentos mecânicos dos personagens e as texturas simples de figurinos e acessórios. Existe certa ingenuidade na simplificação dos traços, algo que convém à fábula rocambolesca de artistas investigando uma rede de “Mestres do Mal”. O tipo de animação também contribui a retirar Dilili do realismo. Ora, em oposição aos personagens de aparência simples, os cenários da cidade são muito mais detalhados, próximos da fotografia, algo que torna as escolhas do desenho deliberadas: Ocelot faz questão de sublinhar seu minimalismo enquanto estilo voluntário. A cidade soa verossímil, enquanto as pessoas que ali vivem são fictícias, como peças se movendo num tabuleiro. Talvez esta seja a maneira escolhida para o diretor afirmar que esta cidade existe de fato, com estes bairros e ruas, porém toma a liberdade de inventar, a partir destes espaços, algo que nunca aconteceu nem jamais poderia ter acontecido.
Aliás, os conflitos se revelam surpreendentemente sinistros para uma animação infantil. A tal seita de sequestradores parte de uma representação alegórica da maldade – homens com vozes cavernosas, ornados com muitos pêlos no rosto e piercings no nariz – para chegar a algo próximo da nossa concepção atual do terrorismo, da religião fundamentalista e mesmo do que se chama pela contemporaneidade ultraconectada de incel. Os vilões constituem homens odiosos, que acreditam na submissão das mulheres como forma de restituir ordem na cidade (eles são, por definição, tradicionalistas e reacionários), demonstrando profundo desdém por tudo o que se conecte ao feminino. Não por acaso, uma garotinha negra liderará o movimento de resgate, com ajuda de três grandes mulheres – Emma Calvé, Marie Curie e Louise Michel – e de um garoto convenientemente feminino e andrógino. Nem todas as reviravoltas soam plausíveis (a decisão de deixar Dilili sozinha obviamente abre portas para o sequestro da garota), porém funcionam dentro da releitura história proposta.
Com Dilili em Paris, Ocelot fornece uma fábula feminista e inclusiva, utilizando a ciência e arte de cem anos atrás como exemplos para a sociedade do século XXI. É muito interessante que as crianças escutem falar sobre tantas personalidades fundamentais à modernidade de maneira lúdica, inseridas numa história linear e cronológica. Ainda melhor, garotas terão exemplos fortes com os quais se identificar para além das princesas e outras figuras retrógradas de adequação às normas sociais. O diretor ousa oferecer um conteúdo perturbador em relação ao extremismo – convenientemente situado nos esgotos da cidade – enquanto forma de cautionary tale às crianças de hoje. O resultado constitui uma espécie de conto de fadas sem fadas. Ele poderia começar com “Era uma vez”, e se desenvolver através das regras do gênero, com a exceção de que as fadas e animais gentis se transformaram em químicos e pintores, e que a garotinha salva a si mesma, além de resgatar outras pessoas. A conclusão, com sua música e cores kitsch, celebra tanto a crença em si mesmo quanto o ideal de transformação da sociedade.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Bruno Carmelo | 7 |
Francisco Carbone | 7 |
Lucas Salgado | 5 |
MÉDIA | 6.3 |
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