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Crítica

Vencedor do Câmera de Ouro em Cannes, prêmio destinado ao melhor filme de estreia de um realizador, Divinas é um retrato contundente e arrebatador, assinado pela franco-marroquina Houda Benyamina, sobre aspirações, amizade, feminilidade e a vida às margens legais, sociais e culturais. Temas complexos que poderiam render um ensaio duro, ainda mais porque centrados numa personagem que transita no confuso espaço entre infância e juventude. Contudo, este drama é perpassado por inesperados momentos cômicos e ternos, ainda que se encaminhe para uma conclusão inevitavelmente terrível.

Dounia (Oulaya Amamra) vive com sua mãe nos arredores de uma Paris que não é lá muito cinematográfica, numa comunidade improvisada de casebres insalubres e amontoados – espécie de favela francesa. Ela frequenta a escola ocasionalmente, quando trava acalorados debates com sua professora sobre um futuro que parece não lhe pertencer, e demonstra sua religiosidade numa burca que veste com sua amiga Maimouna (Déborah Lukumuena) para facilitar os roubos que praticam em um mercado. Para ocupar suas tardes e melhorar sua vida, Dounia decide trabalhar para a traficante local, Rebecca (Jisca Kalvanda), e entre um golpe e outro ainda encontra tempo para admirar a razão de seu afeto, Djugui (Kevin Mischel), segurança do mercado que ela rouba e dançarino contemporâneo que ela adora espiar no palco, preferencialmente sem camisa.

Dounia é interpretada inspiradamente pela estreante Oulaya Amamra, que também é irmã mais nova da cineasta Houda Benyamina. Depois de um casting de mais de 3 mil jovens garotas, a caçula acabou com o papel e apresenta na tela uma performance surreal que sequer permite questionamentos sobre nepotismo. Amamra e Lukumuena compartilham uma visceralidade palpável e tocante na construção de personagens que em essência são frágeis, mas que mantém suas delicadezas ocultas sobre camadas de dificuldades e limitações que lhe são impostas por suas condições sôfregas. Comparações com o recente Garotas (2014) são inevitáveis, já que os dois filmes têm como protagonistas jovens envolvidas com o crime nos arredores de Paris. Sob certas perspectivas, eles se complementam. Ainda assim, Divinas possui sua singularidade e sobressai por suas pretensões e considerações sobre amizade, lealdade e a inquietude juvenil.

Entre as dualidades que percorrem Divinas e sua protagonista, é interessante notar o contraste intencionalmente impresso por Benyamina em sua narrativa no que tange à admiração de Dounia por Djugui. Ao contrário de tantos filmes similares sobre delinquentes juvenis, aqui é uma menina que admira o menino e o tem como o troféu máximo caso seja exitosa em suas intenções criminosas; sua recompensa será em dinheiro, fama e num lindo rapaz. A diretora, munida de seu olhar potente, não se intimida ao explorar o corpo de Djugui com sua câmera e curiosamente manipula a figura autoritária do segurança quando o coloca no palco, dançando em movimentos sensuais e simbólicos para sua história, desconstruindo arquétipos e paradigmas de uma masculinidade caricaturesca que o cinema insiste em reprisar.

Os sonhos de Dounia parecem sempre um passo à frente de seu caminho: quando ela conquista algo, perde algo imediatamente. Na ambivalente jornada de sua personagem, Benyamina demonstra a sensibilidade de uma geração inconsequente, o que é explícito numa sequência em que a garota dança ao som da controversa cantora Azealia Banks às vésperas de oferecer sua virgindade para aplicar um golpe em um poderoso traficante. Em contraponto, seus sonhos pueris são exibidos em uma memorável cena, na qual as duas amigas imaginam um passeio numa Ferrari que dificilmente teriam; a cineasta enquadra as jovens em um close enquanto desloca personagens e câmera em um carro invisível conduzido por sua dolly. Spike Lee, que explorou tal efeito em seus filmes copiosamente, deveria ficar orgulhoso.

A vitalidade na condução de Divinas e suas atrizes são soberbas e oferecem momentos encantadores, o que torna cada vez mais difícil acompanhar este inspirado conto enquanto o filme se aproxima do inevitável e sombrio fim. Fica evidente desde sempre que tudo poderia dar errado para Dounia, mas o roteiro de Benyamina, Romain Compingt e Malik Rumeau segue por resoluções tão inesperadas quanto amargas. Esse tipo de transição, que transforma uma história agridoce numa tragédia realista e assustadora, já seria difícil se conduzido por um cineasta experiente, então é ainda mais louvável que este seja o primeiro longa-metragem de uma promissora cineasta. Já devidamente reconhecida em Cannes, é de se esperar com entusiasmo pelo que está por vir para Houda Benyamina.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Graduado em Publicidade e Propaganda, coordena a Unidade de Cinema e Vídeo de Caxias do Sul, programa a Sala de Cinema Ulysses Geremia e integra a Comissão de Cinema e Vídeo do Financiarte.
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