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Sinopse

Por mais que suas trajetórias possam ter sido diferentes, o destino de todos eles, até então, é o mesmo: ser refém do próprio vício. Confinados em um prédio localizado em São Paulo, um grupo de viciados em crack luta para reconstruir a própria vida enquanto passa pela difícil fase da desintoxicação. Enquanto alguns encaram a situação com bom humor e otimismo, outros já viram dias melhores.

Crítica

O letreiro que encerra Diz a Ela que Me Viu Chorar menciona a infeliz descontinuidade do programa social observado pela cineasta Maíra Bühler, em virtude da então eleição de um prefeito que não acredita em dinâmicas de ressocialização como aquelas desenvolvidas no hotel Parque Dom Pedro, na cidade de São Paulo. O local acolhia toxicômanos, oferecendo-lhes abrigo e chance de convivência longe das ruas, além de oportunizar tentativas de recolocação profissional, portanto tratando a questão como concernente à saúde pública. Todavia, à realizadora o mais importante é observar a rotina de pessoas que têm em comum, além da dependência química, a solidão. Não à toa, diversos casais são colocados na linha de frente, o que propicia a apresentação de instantes de carinho contrastantes com o desalento generalizado no local. Em poucas passagens a equipe da organização encarregada, ou seja, os mediadores dessa população aparecem em cena.

Diz a Ela que Me Viu Chorar deixa o protagonismo aos homens e às mulheres que falam da vontade de “vencer na vida”, de quebrar as adversidades e sair daquela situação de miserabilidade material e existencial. As paixões (cônjuges, times de futebol, animais de estimação) são encaradas como âncoras, dispositivos para que os moradores evadam, ainda que rapidamente, do redemoinho cujo centro é a utilização de drogas ilícitas. Aliás, o despudor do registro permite flagrantes desse tipo de consumo, com reações diferentes ao compartilhamento, por exemplo, de um cachimbo de crack. Contrariando o movimento prevalente socialmente da varredura dos chamados “drogados” para debaixo do tapete, distanciando-os do primeiro plano, Maíra opera no sentido completamente oposto, detendo-se em banalidades e ocasiões sintomáticas, demonstrando, fundamentalmente, interesse por esses cotidianos atravessados pelos vícios. A maior parte dos vizinhos protagonistas é negra. Não é necessário verbalizar tal marginalização que as imagens deflagram bem.

Ainda que o procedimento adotado não tenha tantas variações, do que decorre uma estagnação em determinados blocos do documentário, há cenas lancinantes nas quais as realidades entrecortadas pela desesperança atingem uma espécie de ápice emocional. Uma delas, a do senhor, dono de uma voz prodigiosa, entoando a canção que dá nome ao filme, carregando um tom melancólico que transcende o conteúdo já triste da letra. Repetidas vezes os casais enfocados parecem vivenciar a dura rotina com um pouco menos de exasperação, exatamente por terem em quem se apoiar. Indício forte disso, a sequência do homem, evidentemente sob o efeito de substâncias que lhe turvam a consciência, vociferando contra a amada ao telefone, pois ela sinaliza abandoná-lo. Ele grita que não consegue suportar tanta tristeza, implorando por um pouco de carinho. O beijo ganhado depois o acalma, mas não o impede de declarar-se à sua amada.

Maíra Bühler e sua câmera colada nas circunstâncias – até mesmo as tensionadas pelo comportamento ocasionalmente violento dos moradores – geram proximidade com uma população constantemente tornada invisível. Socialmente, toxicômanos são criminalizados, tratados como problema que deve ser colocado longe dos holofotes. A cineasta, nadando contra a torpe maré, lança luz sobre essa gente, se achegando, os revelando, não os reduzindo a um sintoma de sua desgraça. Diz a Ela que me Viu Chorar permanece totalmente fiel a esse propósito de conservar a humanidade de sujeitos que, por desvios que não deveriam passar meramente pelo prisma dos julgamentos morais, acabaram encontrando nos entorpecentes uma possibilidade de mitigar seus problemas e dores. O filme deixa a graça sobressalente em momentos pontuais, não retorcendo a realidade em função de uma preconcebida taciturnidade, mas acaba sendo um retrato amargo de várias falências humanas.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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