Sinopse
Depois da morte do avô que a criou, a cineasta Maïwenn decide investigar o passado e descobrir suas raízes argelinas.
Crítica
Em sua trajetória como diretora, Maïwenn tem se dedicado à arte do conflito. A cineasta concebe a dramaturgia enquanto oportunidade de promover catarses em grupo via momentos de choro, riso, raiva e afins. Trata-se de uma compreensão exteriorizada da imagem: todo sentimento íntimo precisa se traduzir no corpo, em maneira imediatamente identificável pelo espectador. Seguindo este raciocínio, em DNA (2020), os personagens não manifestam posicionamentos ambíguos nem indecisos em relação à morte do patriarca. Eles estão muito tristes ou sarcásticos, na defensiva ou no ataque. Para os atores, esta constitui uma bela oportunidade em termos de jogo cênico: há espaço suficiente para as brincadeiras com os gestos, a voz, as provocações de olhares e físicas (incluindo tapas e um rosto esfregado violentamente contra um prato de comida). O imaginário de silêncios que costuma povoar as representações do luto cede espaço ao palco traduzido em ringue. A cineasta aproxima-se da filmografia de Xavier Dolan, David O. Russell e outros artistas para quem o prazer da mise en scène se encontra no embate, e quanto mais choque, melhor.
Felizmente, o drama francês conta com um elenco invejável, a começar pela própria diretora, muito confortável em cena. Desde a introdução, ela não poupa esta mãe de três crianças, um pouco vulgar nos gestos (vide a imitação de Amy Winehouse) e propensa a uma perversidade passivo-agressiva com a mãe. Ao lado dela, Fanny Ardant abandona a sensualidade que os diretores lhe solicitam com tanta frequência, para compor uma mulher grosseira, jogando objetos pelo ar e empurrando pessoas durante um velório. Nota-se o deleite novelesco em desconstruir a elegância das cerimônias e subverter o pressuposto de polidez esperado da morte. O filme ri de maneira libertadora do passo a passo dos ritos funerários – escolha do caixão, do tecido interno, da trilha sonora do velório, dos símbolos ao redor do cadáver – proporcionando uma mistura generosa entre humor e melodrama. O excelente Louis Garrel dispara tiradas irônicas como se as improvisasse, enquanto o jovem Dylan Robert brilha nas sequências da casa de repouso. Em especial, Alain Françon encarna o único personagem dotado de algum mistério. Por esta razão, seu personagem – agressivo como todos os outros – constitui o mais interessante, conduzido com sarcasmo impecável pelo ator.
Em paralelo, Maïwenn domina a chave do cinema ultrarrealista de aparência documental, com uma câmera na mão deslizando entre a meia dúzia de rostos reunidos. O espectador se converte num personagem suplementar, espremido entre o círculo familiar. Salta-se habilmente de uma fala à seguinte, de um cômodo ao espaço anexo, ou ainda de uma discussão a um jantar. Privilegia-se a sensação da imagem ao vivo: os personagens não refletem sobre o que fizeram, nem sobre o que pretendem fazer a seguir. O grupo barulhento vive num eterno presente – escolha curiosa para um filme sobre as raízes argelinas (portanto voltadas ao passado) e à decisão de conhecer a Argélia (um sonho para o futuro). Há uma combinação tão ágil quanto fluida de temporalidades. A cineasta ousa elaborar uma obra voltada à cultura e à beleza de Argel, embora se passe quase inteiramente em solo parisiense. Ela homenageia livros que não lê, um povo que representa raramente, rituais apenas mencionados. O norte da África, a religião muçulmana e a cultura árabe tornam-se ideias fascinantes à jovem e ao filme, para o qual o país de origem do avô jamais ultrapassa o estágio de um belo sonho (e, portanto, de fetiche).
Por apostar na estrutura coral, com uma dezena de personagens relevantes, DNA corre alguns riscos de narrativa e montagem. Alguns personagens adquirem desfechos mais bem-sucedidos do que outros: enquanto a reconciliação entre irmãs (Maïwenn e Marine Vacth) adquire um teor funcional, a mãe (Fanny Ardant) é praticamente abandonada pelo caminho. A amizade com François (Louis Garrel) rende as melhores interações amigáveis, já o rancor com Ali (Florent Lacger) nunca se justifica a contento. Mesmo o símbolo da genética se torna literal demais: Neige passa a comprar testes de laboratório, medir sua porcentagem de sangue argelino e interrogar a porcentagem dos parentes. A diretora ganha e perde ao evitar poesias cotidianas e metáforas sobre o luto: por um lado, dedica tempo considerável à construção de diálogos verossímeis, garantindo que todos os personagens tenham a oportunidade de destaque individual. Por outro lado, orbita em torno de figuras que não trabalham, não estudam, não possuem relacionamentos amorosos. Em outras palavras, estas figuras não existem no dia a dia, fora do conflito nuclear do avô morto. Elas podem se dar ao luxo de abrir um parêntese para gritar e chorar, sem precisarem pagar as contas nem buscarem os filhos na escola. O realismo menos empolgante, em termos dramáticos, é convenientemente deixado de lado.
Cria-se portanto um cinema social sem real vocação para analisar problemas políticos: o drama jamais investiga questões relacionadas à imigração, à inclusão na sociedade francesa, ao preconceito com culturas distintas. Talvez a família pudesse ser marroquina ou tunisiana sem grande diferencial, visto que as especificidades argelinas possuem função narrativa limitada. Esta simplificação serve a tornar o resultado acessível, enquanto evita clichês do saudosismo (a nostalgia do tipo “Ah, na minha terra/ época, tudo era melhor”). Entretanto, a opção de poupar o colonialismo francês de críticas enfraquece o estudo sobre uma França reerguida com mão de obra magrebina. O projeto se sai melhor pelo prisma do drama familiar de vocação universal – todos devemos ter alguma mãe, tio ou primo correspondente às figuras retratadas. Nenhum personagem se resume a bondoso ou malvado, vítima nem agressor, o que permite a identificação com vários deles, sem tomar partido de um lado em detrimento do outro. Assiste-se com prazer à guerra inconsequente – afinal, estes personagens se reencontrarão no jantar seguinte –, no entanto a cultura argelina se ressente do tratamento cândido, servindo de bandeira para (literalmente) cobrir o rosto sonhador da protagonista francesa.
Filme visto online no Festival Varilux de Cinema Francês, em novembro de 2020.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Bruno Carmelo | 6 |
Robledo Milani | 4 |
Chico Fireman | 5 |
Francisco Carbone | 8 |
Alysson Oliveira | 6 |
Ailton Monteiro | 7 |
MÉDIA | 6 |
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