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Sinopse

Hong Kong é abalada por uma série de protestos em 2019, os maiores desde que a Grã-Bretanha devolveu a área à China em 1997. Manifestantes locais entram em confronto direto com os policiais.

Crítica

Ainda impera entre grupos cinéfilos a noção de que o documentário se legitima pela importância de sua mensagem. Quanto mais urgente o tema, maior o valor: protestos, genocídios, guerras, escândalos de corrupção, defesa do meio ambiente e abusos de poder seriam mais importantes a discutir do que afeto, romances e a banalidade do cotidiano. Acredita-se que o documentário possua uma função prática, constituindo paradoxalmente uma arte utilitarista destinada a transmitir certa verdade aos espectadores. Justificativas de premiações e textos de críticos ainda louvam obras que retratam um tema “importante”, “necessário”, “urgente” e demais adjetivos retóricos. O filme entra em campo com o jogo ganho: se aborda um tema estimado valioso, pelo ponto de vista que me interessa, já possui a minha aprovação. A concretização da obra se torna secundária diante das boas intenções e da própria existência do projeto. Por este ponto de vista, que diferença existiria entre o cinema e a reportagem? De que maneira os trabalhos radicalmente diferentes do jornalista e do artista se distinguem face a um confronto armado?

Esses questionamentos contribuem à reflexão sobre Do Not Split (2020). O curta-metragem norueguês-americano se cola aos protestos de jovens de Hong Kong, quando a China decide implementar no território independente a severa e arbitrária Lei de Segurança Nacional. O diretor Anders Hammer mergulha durante meses nos enfrentamentos pelas ruas da cidade. A câmera corre de um lado para o outro, abriga-se dos tiros com balas reais e de borracha, corre do gás lacrimogêneo, esconde-se em prédios junto aos adolescentes. Há evidente coragem do cineasta, e também a disposição a captar estes momentos ao vivo, com câmera tremida, som incerto e escolhas hesitantes de enquadramento. Para o projeto, importa em primeiro lugar estar lá: a simples presença de um estrangeiro com uma câmera, dentro de um país conhecido pelos inúmeros freios à liberdade de expressão, significa um gesto político digno de nota. Hammer busca os jovens de melhor traquejo com a língua inglesa e pede que lhe expliquem o que está acontecendo: quem está atirando, por quê, e o que muda de um dia para o outro. Ele não parece compreender a língua local, nem dominar as especificidades do conflito China-Hong Kong, porém está disposto a aprender com os agentes dos movimentos sociais.

Assim, o filme assume tanto o olhar estrangeiro quanto a mensagem para exportação. Os letreiros com curtas explicações estão longe de abarcarem a complexidade política do tema, no entanto, servem de porta de entrada ao público ocidental e leigo. A direção toma partido dos protestantes, multiplicando cenas de policiais estrangulando jovens, atirando em pedestres a caminho de suas casas, intoxicando bebês com gás lacrimogêneo. Os representantes estudantis, líderes do governo e porta-vozes das forças da ordem estão ausentes. O discurso foge à reflexão distanciada para mergulhar no eterno presente do filme-espetáculo, cujo diálogo com o interlocutor opera por meio das sensações. Do Not Split constitui uma montanha-russa de agitação colorida e incerta, familiar para os brasileiros que também sofrem com a nossa versão da Lei de Segurança Nacional, herdada da ditadura militar, e com a opressão violenta às manifestações de rua (pelo menos, aquelas contra o governo) em especial desde 2013. O curta-metragem oferece um olhar de constatação, importante primeiro passo para a compreensão do conflito. Entretanto, evita se afastar para elaborar conclusões e hipóteses. O filme insiste na função do cinema enquanto prova e apreensão do real.

Cinematograficamente, Hammer se atém ao registro imediato. O uso do som direto e das imagens fora de quadro correspondem ao registro de reação, ao invés de decisão: a câmera se adapta como pode à truculência dos protestos. Sem qualquer forma de controle sobre o ambiente, é facilmente dominada por ele. O cineasta escolha os dias e lugares onde deseja estar, mas se converte em refém das ações à sua frente. Neste caso, a montagem teria sido fundamental para determinar um ritmo particular e imprimir um pensamento autoral a partir de tantas gravações caseiras alheias e falas de terceiros, abafadas por máscaras. Ora, o documentário segue em ritmo linear e cronológico, elencando datas na tela sem explicar as mudanças essenciais de um momento ao outro. A rígida imersão nos conflitos impede a inserção de metáforas e respiros. Enquanto isso, o roteiro se mostra indeciso entre fazer da coletividade um protagonista anônimo ou acompanhar a vida de alguns jovens ao longo dos meses. A duração final de 35 minutos se mostra curiosa: teria sido mais proveitoso inserir este material dentro de um longa-metragem, onde poderia ser enriquecido pela fricção com captações de outra natureza.

O diretor filma mês após mês, incapaz de estipular um senso de finalidade ao discurso: a narrativa poderia continuar durante muito tempo, ou então acabar antes da pandemia de coronavírus, visto que Hammer não conduz o espectador a um desfecho preciso. Ele se limita a um espectador privilegiado, descobrindo em primeira mão uma faceta dos protestos raramente veiculada pela mídia oficial. Algumas ideias se tornam óbvias, sobretudo no que diz respeito à denúncia da excessiva violência policial. No entanto, no meio do furacão, o curta-metragem evita elaborar intelectualmente o que está observando. Em que consiste a Lei de Segurança Nacional? De que maneira funcionava o sistema legal em Hong Kong antes deste projeto de lei? Em que circunstâncias o território foi devolvido pelos britânicos “como um saco de batatas”, segundo um personagem? O que significam tantos símbolos envolvendo o uso de máscaras (pré-pandemia), a cor preta das roupas, o bordão “Não se separe” do título? Que papel tiveram as redes sociais, os jornais convencionais, o governo federal? Retratando o presente na posição um manifestante suplementar, o cineasta não investiga o passado, nem cogita rumos para o futuro.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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