Crítica
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Sinopse
Douglas encontra na paixão incondicional por seus cachorros a salvação de uma infância marcada por tristezas e tragédias.
Crítica
Há tempos devendo um filme digno de sua fama, o cineasta Luc Besson volta às telonas com uma realização, no mínimo, curiosa. Não é um retorno triunfal, mas nela há faíscas interessantes. Dogman é um conto de fadas às avessas que mistura abandono parental, ligação quase sobrenatural com animais que obedecem por tele(em)patia e um protagonista que se esconde do mundo (ou será que se mostra?) em fantasias de ícones artísticos femininos. O personagem principal é Douglas (Caleb Landry Jones), detido no começo da trama pela polícia ao dirigir (vestido de Marilyn Monroe) um caminhão repleto de cães. Claramente perturbado, esse sujeito esquisito é levado para uma instituição psiquiátrica na qual revela toda a sua biografia, em tom confessional, à psicanalista Evelyn (Jojo T. Gibbs). Ele foi uma criança criada num ambiente absolutamente hostil, bastante oprimido por um pai caracterizado pela agressividade associada ao fanatismo religioso (traço que, a bem da verdade, se manifesta bem mais por meio do irmão mais velho). Tudo o que sabemos da história pregressa desse cadeirante encantador de cães vem do que ele próprio conta à analista, ou seja, pode haver floreios, mentiras e pequenas invenções completando as lacunas. E o grande desperdício do filme é a falta de ambição de Besson quanto ao questionamento da veracidade, pois ele nunca coloca em xeque a confiabilidade do narrador.
Ainda sobre os desperdícios, falta complexidade à relação de confiança entre narrador e ouvinte. Evelyn é uma escuta praticamente sem subjetividade, colocada em cena principalmente como dispositivo conveniente para Douglas ter a quem contar a sua sina – assim sendo, ela nos representa como testemunha. Luc Besson até ensaia estabelecer uma ponte de identificação entre os dois personagens que passam quase todo o longa-metragem conversando. Afinal de contas, o rapaz detido é vítima dos abusos de um homem (seu pai) comprometido com a violência acima de tudo, enquanto a mulher que lhe dá atenção também está às voltas com a agressividade de um homem (o ex-marido e pai de seu filho pequeno). No entanto, o cineasta francês vai gradativamente perdendo o interesse em Evelyn como indivíduo, tornando cada vez mais raras as observações sobre sua vida além das paredes que emolduram as conversas com Douglas. Um filme que poderia ter servido como inspiração para tornar essa dinâmica menos burocrática é O Silêncio dos Inocentes (1991), no qual é criada uma dinâmica intrincada entre o falante prisioneiro e ouvinte mulher da lei. A lembrança da obra-prima de Jonathan Demme não é gratuita, pois Dogman tem um protagonista que, em alguma medida, lembra Hannibal Lecter pela periculosidade imprevisível (quase sobrenatural) e ainda tem algo do homicida Buffalo Bill.
Em O Silêncio dos Inocentes, Buffalo Bill é um assassino que se veste de mulher, assim como faz Douglas em Dogman. No entanto, a prática no longa-metragem de Luc Besson está dissociada de qualquer controvérsia negativa, pois significa a forma encontrada pelo protagonista para escapar às garras da realidade. Depois de uma infância dura marcada pelo desamor quase completo, Douglas encontra primeiramente no teatro um terreno seguro e fértil. É bonita a forma como esse personagem se ilumina pela tarefa de viver outras pessoas no palco, especialmente nas vezes em que encena as peças de William Shakespeare na companhia da única mulher por quem se apaixonou. Besson confere outras tintas a essa fuga por meio da arte quando Douglas encontra uma improvável possibilidade de trabalho no show de drag queens em que interpreta lindamente Edith Piaf e a canção Lili Marlene (homenagem à Marlene Dietrich e, por conseguinte, a Hanna Schygulla, atriz que entoou a canção em Lili Marlene (1981), de Rainer Werner Fassbinder). Com um pouquinho mais de elaboração, esses instantes poderiam ter colocado o filme, mesmo que momentaneamente, num patamar de grandeza poética, afinal de contas estamos vendo um jovem de vida miserável que “cresce” ao reivindicar o glamour das grandes divas. Douglas, o criador e amigo dos cães, quebra expectativas ao ser bem-sucedido.
O principal destaque de Dogman é mesmo a atuação excepcional de Caleb Landry Jones. Um misto de Coringa (que ele poderia muito bem interpretar, agora fica claro) com Mogli, o Menino Lobo e ainda notas de Oliver Twist, seu personagem é um enigma fascinante, às vezes bem maior do que a trama desenvolvida um tanto quanto no piloto automático e sem a natureza inventiva que poderia torná-la memorável. Caleb consegue ser convincente como indivíduo enigmático e ameaçador, mas sem esconder completamente a fragilidade que remonta à herança deixada pela família disfuncional de Douglas. Enquanto Luc Besson depende muitas vezes da suspensão da nossa descrença (sem fazer força para isso), o ator parece comprometido com a concepção de uma persona do tipo icônica que, várias vezes, é evidentemente maior do que o restante dos componentes dessa equação cinematográfica. Luc Besson poderia propor um filme mais criativo do ponto de vista da linguagem, ou seja, narrativamente falando, sobretudo tendo em vista a riqueza do protagonista irremediavelmente fadado a devolver ao mundo a agressividade que dele recebeu. Além da citada ausência de dúvida sobre a confiabilidade do narrador, o filme ainda carece de um arsenal estético adequado ao sujeito que encontrou nos cães a companhia menos viciosa e na arte uma válvula de escape à sua miséria existencial. Luc Besson continua devendo o filme à altura da sua fama, mas ao menos nos brinda com lampejos dos bons tempos
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