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Sinopse

Dois irmãos elfos adolescentes partem numa jornada para redescobrir a magia do mundo, isso numa realidade em que as coisas fantásticas parecem cada vez mais distantes, passíveis de esquecimento pela maioria.

Crítica

É interessante que, para sua nova animação, a Pixar tenha partido de um conceito sociológico importantíssimo: o desencantamento do mundo. De maneira lúdica, a introdução apresenta ao espectador a ideia de que os tempos pré-históricos foram marcados pela crença na magia. No entanto, com o conhecimento crescente sobre os povos, sobre a geografia e a medicina, por exemplo, certos ritos mágicos se tornaram desnecessários. Quando algum familiar fica doente, nós os levamos ao hospital, ao invés de fazermos apenas uma evocação aos deuses – e mesmo povos mais ligados à transcendentalidade, como os indígenas, possuem conhecimentos avançados sobre o puder curativo de ervas e plantas. As pestes passaram a ser interpretadas como decorrentes de vírus e bactérias, não apenas um castigo divino, e o mesmo vale para os frutos da caça e a pesca, compreendidos a partir de fenômenos biológicos observáveis. A descrença progressiva na magia culminou também na sociedade menos crente na força dos deuses.

Ora, Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica (2020) busca recuperar “o guerreiro que existe dentro de você”, conforme afirmam os diálogos em três ocasiões distintas. A ideia seria introduzir a magia no mundo de hoje – assim, unicórnios andam pelas ruas de uma metrópole, a família dos protagonistas possui um dragão como bicho de estimação e os seres humanos ostentam cores e traços monstruosos. Esta é a interessante maneira encontrada pelo diretor Dean Scanlon e sua equipe para representar tanto a crença na magia quanto a diversidade social. Grandes líderes negras (voz de Octavia Spencer), policiais lésbicas (Lena Waithe) e padrastos latinos (Mel Rodriguez) se encarregam da discreta, porém constante presença da pluralidade social no universo narrativo. Além disso, o roteiro escolhe dois protagonistas ao invés de um: ao lado de Ian Lightfoot (Tom Holland), garoto tímido e com dificuldade de inserção sociais, e tradicional escolha da Pixar para protagonista, existe Barley Lightfoot (Chris Pratt), irmão pouco popular porém feliz com isso, e ostensivamente geek. O aceno aos jogadores de RPG e fãs de videogame certamente torna a obra mais contemporânea.

Além disso, os dois irmãos são órfãos, assim como 90% dos heróis imaginados pelas animações Pixar e Disney. O projeto encontra uma maneira original de lidar com a saudade dos garotos: ao invés de terem o pai em fotos e lembranças, o falecido se materializa pela metade, através de uma magia. A figura de um pai presente apenas da cintura para baixo (um par de calças sociais ambulante) torna-se ao mesmo tempo carinhosa e assustadora, além de representar uma junção literal do realismo com a magia – o personagem constitui a visibilidade da cintura para baixo, e invisibilidade na metade superior. Em paralelo, o filme toma a liberdade de incluir algumas formas de magia brincalhonas que parecem saídas da mente de um pré-adolescente. O cubo gelatinoso assassino, o barco de salgadinho gigante e um mapa do tesouro convertido em desenho infantil constituem recursos que seriam mais comuns nos roteiros de DreamWorks e Blue Sky, por exemplo. Com este projeto, a Pixar ousa se aproximar de um universo um pouco mais infantil, de uma ludicidade ingênua e análoga aos videogames nos quais os protagonistas precisam enfrentar fases para avançar.

Nem todos os recursos funcionam bem em Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica. Existe evidente dificuldade de combinar tramas paralelas com a aventura dos irmãos (a mãe e a Manticore são esquecidas durante tempo excessivo), alguns recursos cômicos soam fáceis demais (a sequência do encolhimento do protagonista), e o mesmo pode ser dito de certas soluções narrativas (o destino conveniente da van). Alguns atalhos narrativos são tomados para se manter uma duração enxuta, que ao menos garante um ritmo ágil, alternando sequências de perseguição com bons momentos de contemplação. Mesmo a presença do pai-pela-metade, com uma roupa falsa lhe dando a aparência de Um Morto Muito Louco (1989), desenvolve-se pouco ao longo da jornada – o pai, trazido por uma espécie de “coleira”, torna-se o sidekick dessa aventura, ao invés do dragãozinho de estimação. Talvez a imaginação de Scanlon aposte em simbologias óbvias demais – espadas, cajados mágicos, pedras mágicas, pontes invisíveis -, no entanto, funcionam dentro da proposta de conjugar a jornada medieval e a magia contemporânea. Como de costume nas produções da Pixar, o acabamento dos desenhos, da iluminação e dos efeitos de som é impecável.

O melhor aspecto do filme se encontra na comovente conclusão, quando todos os caminhos narrativos se encontram, os símbolos recorrentes são ressignificados e mesmo o condicionamento físico da mãe através de aulas de Zumba encontra uma utilidade prática. Este ainda é um elemento que posiciona os filmes da Disney-Pixar acima dos concorrentes: a capacidade de conjugar ação, aventura e uma complexidade emocional ímpar. O desfecho dado à figura do pai e a relação deste com cada um dos irmãos se revela excelente, tanto pelo uso do que se vê quanto do que não se pode ver. O pai será a ponte entre o real e a imaginação, e também o atalho que permitirá aos garotos valorizar tanto os afetos palpáveis – o amor fraterno – quanto o carinho por uma figura que mal conheceram – o amor do pai imaginado. Ian precisará ser literalmente engolido por destroços para renascer diferente, como se trocasse de pele ou se convertesse, enfim, no herói vislumbrado pelo irmão geek.

Com este filme, Scanlon e sua equipe encontraram uma maneira de combinar os sentimentos palpáveis do cinema naturalista (vide a presença constante de carros, vans e motocicletas, o que também torna o resultado uma espécie de road movie) com a noção de esperança no intangível, possibilitada apenas pelo cinema fantástico. Assim, a mãe humana caminha lado a lado com a funcionária dragão, filhos humanos passeiam com o pai invisível, policiais humanos dividem o trabalho com policiais minotauros, vans precárias ostentam o poder dos unicórnios. A ideia de tolerância entre raças e crenças expande-se à tolerância entre teístas e ateístas, entre o real e o imaginário. Entre as tradicionais mensagens “Acredite em sua própria força” e “Acredite na magia”, o filme propõe a crença no desenvolvimento pessoal através da superação do real. O mundo reencanta-se, sem abrir mão das conquistas humanas e sociais trazidas pela modernidade.

 Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.  

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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