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Crítica


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Sinopse

O violonista argentino Lucio Yanel e seu pupilo brasileiro Yamandu Costa se encontram para refazer os caminhos que levaram o estrangeiro ao interior do Rio Grande do Sul há cerca de 35 anos. Yanel embarca com seu herdeiro artístico numa jornada memorialística.

Crítica

Dois Tempos (2021) é um filme de pequenas memórias. A travessia do gaúcho Yamandu Costa e do argentino Lucio Yanel rumo a Corrientes, terra natal deste último, não carrega o peso de uma jornada excepcional. A dupla de violonistas pretende se apresentar numa noite de chamamé, a música típica local, aos habitantes da cidade. Eles compõem o quadro de um festival com várias atrações, sendo desconhecidos pelo público. Ao mesmo tempo, estão acostumados às apresentações após décadas tocando juntos. O diretor Pablo Francischelli os acompanha numa jornada em que o trajeto vale mais do que o destino final. Dentro da linguagem do documentário, estabelece-se um road movie melancólico, repleto de silêncios e contemplações estrada afora. A imagem foge ao espetáculo: esqueça os reencontros com grandes amigos, as descobertas transformadoras, a profunda saudade da infância, a revelação de uma cidade pitoresca. O cineasta se interessa precisamente à banalidade e aos mínimos momentos de ternura que decorrem entre pai e filho simbólicos, na fronteira entre dois países e duas línguas.

Esta abertura à experiência do tempo constitui uma beleza notável do projeto. Os planos são longos, a maioria deles fixos, observando a dupla em simetria dentro do motorhome, ou enquadrada no centro da imagem enquanto tocam no palco. Eles testam seus instrumentos e improvisam canções juntos durante o trajeto, pelo prazer de tocar. De certo modo, encontramo-nos diante de um deleite estético: os homens admiram a paisagem, os sons, a cidade, sem um objetivo preciso – o show se torna secundário diante da oportunidade de escapar da rotina. “Esta é a minha terra. Este é o meu rio. Estas são as minhas árvores”, explica o homem mais velho, quando reencontra a terra de suas origens, face ao brasileiro que ri da explicação afetuosa e possessiva. A poesia se encontra nos pequenos gestos: o jantar com amigos violonistas no bar, o ensaio solitário dentro do quarto de hotel, a felicidade do músico que percebe os argentinos dançando ao som de sua música. Este último instante, curto e muito bem filmado, atesta a capacidade do diretor em captar passagens de afeto cotidiano. A compra de um pão endurecido por Yamandu e Lucio desperta o sentimento de cumplicidade entre a dupla e o espectador, seguindo-os nos momentos mais sutis.

Em contrapartida, a direção limita a espontaneidade através de sequências estimuladas ou condicionadas para as necessidades da câmera. Em outras palavras, Dois Tempos passa por um processo de ficcionalização: o jantar sobre uma mesa à beira da estrada, com forte luz sobre os músicos; o encontro numa praça e a delicada cena final soam roteirizadas. Embora não atuem, os homens reproduzem ações esperadas por Francischelli. Os diálogos acompanham esta estrutura, incluindo momentos em que os personagens relembram fatos presentes na memória de ambos, apenas para informar o espectador. “Você se lembra?”, pergunta o primeiro, para escutar como resposta: “Lembro!”. Quando se instalam no veículo, Lucio soa desconfortável com a presença da câmera à sua frente, o que aparenta frear expressões mais livres. O diálogo sobre a existência do destino se converte em discreto fio condutor, porém este aspecto reforça a imposição do dispositivo sobre o real. O naturalismo das cores pouco saturadas, sons ambientes e tempo real se choca a todo instante com a artificialidade das composições perfeitamente ajustadas à movimentação da dupla.

O aspecto minimalista da narrativa foge ao mergulho psicológico. Conhecemos pouco sobre estes dois homens, sua trajetória como artistas, os planos para o futuro, suas vidas pessoais. Lucio narra o episódio em que recebeu seu primeiro violão, para a alegria do colega, mas as elipses impedem a cena de atingir um impacto maior. Em outro instante, ele encontra um homem que aparentemente se lembra de seu pai, até a montagem se apressar em interromper a interação. Ao rejeitar o sentimentalismo, o filme abre mão simultaneamente do peso das ações. O espectador efetua a viagem junto aos protagonistas, porém sem entender a fundo do que estão abrindo mão quando partem, ou o que esperam encontrar na chegada. A narrativa segue um caminho linear e previsível depois do primeiro terço: as cenas musicais se intercalam com aquelas de deslocamento, e nenhum conflito perturba o andamento da narrativa ou interpela o espectador. Os episódios provocam belos sorrisos nos personagens, e a tonalidade agridoce parece bastar por si mesma. Caberá ao espectador imaginar a importância desta escapada para cada um deles.

Dois Tempos seria passível de uma leitura sintomática: é notável a realização de um documentário tão simples numa fase em que os projetos preferem correr o risco do excesso (de recursos, de discursos, de mensagens) do que o risco da falta. Francischelli propõe um cinema à moda antiga, acreditando no valor do tempo e da vida cotidiana, em consonância com o estilo musical dos violonistas. Seria interessante presenciar o cineasta fazendo um pitching deste projeto a possíveis investidores, munido de intenções tão singelas e difíceis de transmitir em imagens. Em paralelo, a experiência de dois homens viajando a um país vizinho, revendo amigos e aproveitando a aglomeração de um concerto carrega um valor suplementar em 2021, após mais um ano de pandemia de Covid-19, quando o Brasil atinge picos mundiais de mortalidade. O respiro de Yamandu e Lucio traduz um desejo coletivo de ir em direção ao outro, ao diferente, ao desconhecido. O projeto carrega o otimismo de uma partida sem volta, uma carreira longa sem término, um trajeto sem percalços (nem o quase obrigatório pneu furado dos road movies). Se alguns filmes se interessam em criar dificuldades, este documentário prefere eliminá-las.

Filme visto no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em abril de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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