Crítica


4

Leitores


3 votos 6.6

Onde Assistir

Sinopse

Numa fazenda, Dolittle vive com uma variedade de animais exóticos, com os quais conversa diariamente. A rainha Vitória fica doente e o excêntrico médico e seus amigos embarcam numa aventura épica para uma ilha mítica a fim de encontrar a improvável cura.

Crítica

Entre todas as maneiras possíveis de se atualizar o conceito do Doutor Dolittle ao cinema de 2020, este filme adota provavelmente o caminho mais vago: agora, o protagonista é reduzido a um sujeito que fala com animais. Aparentemente, se trata de um grande médico, que abandona o tratamento com humanos para se dedicar aos bichos. Até o dia em que a Rainha da Inglaterra sofre de uma doença incurável, e decide chamar justamente o veterinário para socorrê-la. Algumas cenas mais tarde, Dolittle (Robert Downey Jr.) efetua sessões de psicanálise com leões, cujas queixas incluem a dificuldade de agradar a mãe ou de encontrar sua coragem. Se o personagem de Eddie Murphy também transitava entre a medicina e a veterinária, agora o profissional da saúde age como terapeuta e explorador. Ele possui um pouco de Sherlock Holmes e de super-herói em suas façanhas (dois tipos de personagens previamente interpretados pelo ator), numa síntese curiosa de figuras heroicas do cinema de aventura.

No entanto, era preciso que o herói possuísse alguma densidade psicológica, portanto os roteiristas Stephen Gaghan, Dan Gregor, Doug Mand e Chris McKay (sim, este texto foi escrito a oito mãos) adotam o caminho mais básico do manual do cinema familiar: matar algum membro da família do protagonista. Para os grandes estúdios de filmes infantis, o personagem ideal é a vítima da perda dos pais, filhos ou esposa. Chega a ser sádico o recurso sistemático à simpatia do espectador por meio da morte, além de se tornar acessória a facilidade com que se recorre ao luto nas narrativas. Quer uma princesa interessante? Mate os pais dela. Um herói motivado? Mate a esposa dele. Por mais importante que seja discorrer sobre esta dor universal – a perda de um ente amado -, seria fundamental os roteiristas encontrarem outras maneiras de acrescentar profundidade às narrativas. Em paralelo, as produções precisam buscar outra motivação aos heróis que não sejam dores pessoais – Dolittle age por vingança e pela tristeza de perder a esposa, não por amor aos animais ou à Rainha da Inglaterra, ou apenas por acreditar ser o melhor caminho à sociedade em que vive.

Traumas à parte, Dolittle (2020) poderia funcionar dentro do subgênero da “aventura com animais falantes”, com o pequeno acréscimo das características invertidas: ursos tradicionalmente fortes se tornam covardes, leões tradicionalmente destemidos se revelam felinos frágeis, enquanto libélulas e papagaios são feras guerreiras. Seria um menu magro em termos de desconstrução de estereótipos, mas poderia gerar um humor infantil simples, disposto a brincar com expectativas. Os efeitos especiais são competentes na criação dos animais computadorizados, e a galeria de vozes originais conta com atores incrivelmente talentosos: Emma Thompson, Octavia Spencer, Tom Holland, Rami Malek e Ralph Fiennes são alguns dos grandes nomes a encarnarem os ajudantes de Dolittle. Seria tentador, portanto, resumir a jornada do herói a um conflito simples: o médico/veterinário precisa buscar um medicamento para salvar a rainha da Inglaterra, e no caminho, descobre a sua força enquanto os animais resgatam a autoestima.

No entanto, o principal problema deste projeto se encontra no roteiro frágil, além de confuso. O texto é perito em criar problemas para oferecer a solução um minuto depois: enquanto fogem dos vilões, o ajudante Tommy (Harry Collett) percebe uma ponte onde poderia atravessar. A ponte está visivelmente quebrada, mas os personagens seguem por este caminho, apenas para descobrirem – surpresa – o buraco em plena travessia. Dolittle observa a Rainha enferma e decreta em questão de segundos a doença que tem, qual remédio precisaria, e em quanto tempo ele precisa ser tomado para evitar o óbito. Tommy observa sua primeira cirurgia e declara à amiga/pretendente que este é seu destino, que precisa se tornar aprendiz, enquanto descobre que Dolittle corre o risco de perder a casa, e que se encontram em plena temporada de caça. Todos os riscos são entregues pelo diálogo, despejados sem qualquer forma de preparação. Os conflitos não provêm dos próprios personagens, e sim de fontes externas, com novos cenários e vilões acrescentados durante a jornada.

O espectador pode ficar perdido entre diferentes conflitos: o motivo da jornada do médico seria salvar a rainha? Efetuar o luto? Fugir de Müdfly (o excelente Michael Sheen)? Acertar as contas com o sogro (Antonio Banderas)? A cada cinco minutos é introduzida alguma subtrama que o roteiro não tem tempo, nem disposição de resolver, em especial o romance juvenil destinado a empoderar Tommy, garoto considerado efeminado pelo pai (e o empoderamento de um garotinho pela possibilidade de beijar uma princesa soa ofensivo para os dois pré-adolescentes envolvidos). A produção de Dolittle parece ter passado por muitos caminhos entre o humor besteirol (um dragão com flatulência) e a ação dramática; entre o filme de animais que falam e a história do homem destemido que derrota o vilão e conquista a mocinha. Robert Downey Jr. certamente foi instruído a investir em seu lado mais cartunesco, efetuando um trabalho de composição exagerado em gestos, sotaque e expressões. Como os tons oscilam o tempo todo, o humor funciona raramente, e o ritmo parece ora acelerado demais, ora repetitivo durante a travessia de navio. Havia a possibilidade de uns três filmes familiares diferentes a partir desta premissa, e a montagem combinou todos os três, num processo de aparência conflituosa.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *