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Sinopse

Logo depois do nascimento do primeiro filho com Christine, Antoine Doinel começa um caso com Kyoko, uma bela moça japonesa. O caso ameaça arruinar o casamento e Antoine terá se reconquistar o amor de Christine.

Crítica

Christine Darbon, a jovem que pede aos demais que a chamem por senhora e não senhorita, sobe as escadas do prédio em velocidade. Até então, havíamos conhecido apenas suas pernas, claras como o vestido. François Truffaut abre Domicilio Conjugal com um plano ousado. Apresentar a personagem de Claude Jane sem o rosto, focalizando algo tão inusitado quanto provocador, sinaliza para um cinema que aparenta não se curvar ao tradicional. Apenas aparenta. Quando chega ao último degrau da escada, surge Antoine Doinel e os rumos se modificam. Os leitores mais íntimos da filmografia do diretor francês sabem que Doinel não significa  apenas mais um personagem. Conhecemos o menino rebelde, com problemas na família e na escola desde Os Incompreendidos (1959), passando por Antoine e Colette (1962), Beijos Proibidos (1968) e, mais tarde, por Amor em Fuga (1979). Doinel não é outra coisa senão o próprio cinema de Truffaut - o seu único e legítimo legado.

Por isso a importância do que se seguirá após o aparecimento de Doinel em Domicílio Conjugal. Ele está casado com Darbon, cuja conquista presenciaremos em Beijos Proibidos. O amor - tema ao qual o nome do diretor será vinculado - encontra aqui um momento decisivo no casamento e na rotina.  A paternidade, registrada em bela cena, e a estabilidade econômica, conseguida através de um emprego estranho em que cuida de maquetas de navios, darão cores ambivalentes ao progresso de um dos nomes mais importantes da Nouvelle Vague. Nos meus primeiros tempos de espectador, não tive dúvidas ao preferir Truffaut ao colega de movimento Jean-Luc Godard. Apesar de considerar Godard inovador, entendia ser a forma a maior inimiga do seu trabalho. Por vezes, performático em excesso, por outras, esvaziado em meio à tamanha ambição. Por outro lado, gostava da magia a recobrir o cinema de Truffaut, o misto de simplicidade e potência combinado nas narrativas. Talvez compactuasse, em certa medida, com a ingenuidade - ou fizesse vistas grossas. O momento dessa preferência durou pouco e se dirigia, em especial, aos filmes dos anos 60 (Jules e Jim: Uma Mulher para Dois e Fahrenheit 451). Passado esse tempo, compreendi - e senti- o que estava em disputa quando a relação dos dois diretores - então amigos - estremeceu. Por mais críticas ao diretor de Acossado (1960), não podia deixar de ver ali o único ar possível a ser respirado pelo cinema de então.

Volto à cena das pernas de Jade, no início promissor de Domicílio Conjugal. O frescor da abertura deixa para trás, no encontro com Doinel, o caminho que devia ter sido seguido.  A afirmação pode enganar, pois Domicílio Conjugal é, sim, um bom filme. Ao menos um filme correto. O problema é o alto custo dessa qualidade, ao nos depararmos com o espírito inovador e rebelde do cineasta arrefecido, pouco mais de 12 anos depois de seu grande filme de estreia. As convenções às quais Doinel se entrega no longa são reflexo direto das convenções e do acomodamento de Truffaut como diretor. Quando Doinel trai a esposa com Kyoko (Hiroko Berghauer), a concretização da trajetória burguesa do personagem se completa. A nada serviu o impulso transgressor de Os Incompreendidos. Distraído, o protagonista de Truffaut é acometido pela mesma hipocrisia que uma vez tomou conta da sua casa, na infância, e a qual presenciamos - e odiamos -  na tela do cinema.

Os franceses têm gosto pelo ilustrar do cotidiano e das relações humanas. Basta pensarmos no escritor Honoré de Balzac e em sua megalomaníaca Comédia Humana. A observação sobre os tipos sociais são a melhor maneira de os reconhecermos e fugirmos deles. Algo que a trajetória de Antoine não se proporá a seguir. A magia do diretor cai por terra ao se misturar com um realismo pobre, moralmente estagnado. Sinal de um cinema gradativamente entregue às preocupações com a produção, Truffaut tem em Domicílio Conjugal o menos ideológico dos seus filmes - porque o amor também é ideologia. Tecnicamente muito competente - com destaque para Nestor Almendros e Agnès Guillemot, na direção de fotografia e montagem, respectivamente - o filme se ampara em qualidades irrevogáveis, resistindo a tudo, menos ao cinismo que o corrompe.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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