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Sinopse
Sábado, 1º de janeiro de 2003. Enquanto Brasília celebra a posse do novo Presidente da República, duas famílias do interior se reúnem em uma velha mansão rural para um churrasco regado a champanhe, segredos, anseios e frustrações familiares.
Crítica
Primeiro do ano. Dia de confraternizar, reunir parentes e amigos. De agradecer por tudo que foi vivido e arregimentar novas esperanças pelo que está por vir. De fazer planos, traçar metas, mas também momento para parar e fazer um balanço, observar o que não foi tão bem nos últimos meses e o que pode ser feito para melhorar. É neste contexto em que se desenvolve Domingo, longa dirigido por Clara Linhart e Fellipe Barbosa, a partir do roteiro de Lucas Paraízo. Parcerias essas que não são novas. Linhart fora assistente de direção de Barbosa nos dois longas anteriores dele, Gabriel e a Montanha (2017) – que, aliás, também tinha Paraízo como roteirista – e Casa Grande (2014). Juntos, fazem o que sabem melhor: explorar as vicissitudes de uma família tradicional a partir dos seus detalhes, começando pelas beiradas até, progressivamente, ir se aproximando do âmago dos dramas aqui enfrentados. Melhor data para isso, aparentemente, não há.
O velho casarão, que está na família há gerações, está cheio – e prestes a ficar ainda mais movimentado. O velho caseiro escolhe a ovelha que será abatida para o churrasco – refeição essa que ele não terá acesso. Os donos parecem os menos preocupados – o marido deita ao sol, enquanto que a nova mulher está no quarto ao telefone. O casal de amigos chegou há pouco, e já se instalou: o homem ajuda fazendo o fogo para a carne, a esposa, gravidíssima, tenta descansar. As crianças correm e se divertem. Os adolescentes se atiram na água, os pequenos brincam com pistolas d’água, a garota prestes a completar 15 anos dorme até mais tarde. Na cozinha, a empregada conta com a filha para lhe ajudar a preparar o almoço. O instrutor de tênis está a caminho, bradando as mudanças que começam ali. Enquanto isso, no lado de fora do portão, a matriarca chega com o filho problemático, ambos buzinando à espera de alguém que venha deixá-los entrar. Ela acha que ainda manda. Não poderia estar mais enganada.
Afinal, o contexto sócio-político não pode ser desprezado. Estamos no dia primeiro de janeiro de 2003. Para quem não lembra, foi quando tomou posse, em Brasília, o novo presidente da república, Luiz Inácio Lula da Silva. Um iletrado, metalúrgico, líder sindical, com um dedo faltando, era o novo governante da nação. Numa realidade como essa, fazia sentido ainda contar quantas taças de cristal são levadas à mesa? Onde será feita a festa de debutante da filha, se na própria propriedade ou no clube da cidade (“mas lá todo mundo pode fazer”)? Viver às custas de um dinheiro velho parece incomodar apenas alguns, mas por quanto tempo essa utopia permanecerá. Domingo está sendo lançado quinze anos após este evento. Estamos a par do que esta mudança de poder representou naquela época e, mais importante ainda, o que se sucedeu na década e meia seguinte. Quantos sonhos foram frustrados, quantas ambições desmedidas vieram à tona. E os que mais precisavam, o que a eles foi reservado? Bastava seguir baixando a cabeça e aceitando as migalhas que lhes eram oferecidas, ou havia chegado o momento de partir?
Paraízo, Barbosa e Linhart não ignoram as transformações que a sociedade brasileira enfrentou nestas quase duas décadas. Observar como as coisas se davam há menos de vinte anos – já estávamos nos anos 2000, por favor – choca e incomoda os mais sensíveis e antenados, mas não deixa de ser também um alerta. Queremos que volte a ser como era? Ou precisamos estar ainda mais mobilizados para que tal cenário não se repita? Misoginia, homofobia, sexismo, servilismo: está tudo no cardápio. As drogas estão por todos os lados – basta procurá-las – e a opressão através do sexo é sempre a primeira a se manifestar. Infidelidade é tão frequente que nem mais é questionada, instabilidade emocional é tratada como chilique – ou ‘coisa de artista’ – e o que se aprende vem pelo sermão ou através do exemplo? Todos sabem como funciona.
Logo no começo de Domingo, uma personagem, ao telefone, chama o amante e lhe diz: “venha, sei que hoje é sábado, mas está com uma cara de domingo”. Diálogo similar é repetido mais à frente: “mas afinal, hoje é sábado ou domingo?”. Bom, nenhum nem outro. Primeiro de janeiro de 2003 foi uma quarta-feira. Não saber nem o dia em que se está é típico de uma classe prestes a ser extinta. Com esse filme, Barbosa se aproxima do seu trabalho mais celebrado – o citado Casa Grande – pela temática e olhar incisivo que exerce sobre esses personagens. Mas este é também um trabalho de elenco – semelhante ao recente O Banquete (2018) – no qual nomes como Camila Morgado (talvez no melhor momento de sua carreira cinematográfica) e Ítala Nandi (lembrando a composição de Nathalie Baye em É Apenas o Fim do Mundo, 2016) se destacam. Está no peso deste conjunto, e na visão afiada dos seus realizadores, a força de uma obra que não deixa de ter excessos – a obsessão por sexo, em algumas passagens, chega a lembrar as pornochanchadas dos anos 1970 – e que, mesmo ciente destes, termina por empregá-los a seu favor. Há coragem em assumir-se como tal, e mais ainda em apontar para qual caminho seguir a partir daqui.
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