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Crítica


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Sinopse

Depois de um incidente com a equipe masculina de futebol da pequena cidade de Clourrières, o técnico decide montar um time somente de mulheres para terminar o campeonato. Convenções familiares e sociais serão abaladas.

Crítica

O diretor Mohamed Hamidi é movido por intenções nobres em Donas da Bola (2020). Ele pretende mostrar que as mulheres podem jogar futebol tão bem quanto os homens, que são capazes de desempenhar qualquer tarefa ocupada pelos maridos, e que ambos os gêneros podem conviver em igualdade. O filme toma a precaução de incluir na equipe amadora personagens de diferentes origens e classes sociais, tanto brancas quanto árabes, com filhos ou não, trabalhando fora ou dentro de casa. Contrariamente às expectativas, estas esposas entediadas dedicam-se ao esporte com vigor, substituindo os maridos suspensos após uma briga no campeonato local. Hamidi acredita que todos podem conquistar seus sonhos e superar preconceitos, formando uma comunidade harmônica repleta de diversidade. Apesar dos numerosos obstáculos encontrados pelas jogadoras, elas respondem a cada derrota ou tentativa de censura com o dobro da vontade. As personagens constituem o que se convencionou chamar de lição de vida.

Os problemas começam na idealização das trajetórias. Stéphanie (Céline Sallette), Sandra (Sabrina Ouazani), Catherine (Laure Calamy), Cindy (Manika Auxire) e demais personagem representam exemplos predefinidos de superação, em trajetórias equivalentes. As mulheres partem de fases pessoais ruins (o tédio da rotina doméstica, a condescendência dos maridos, a saída da prisão, o desemprego), encontrando no esporte a confraternização imediata e o sucesso garantido. Em oposição ao realismo, a comédia dramática aposta no terreno fabular do mundo como ele poderia ser caso todos se tratassem com mais afeto. No entanto, a facilidade deste raciocínio beira o pueril: há razões estruturais, políticas e financeiras mais fortes do que a simples força de vontade impedindo as mulheres de conquistarem a igualdade de direitos. O discurso sugere que basta um bom exemplo e uma coragem inabalável para resolver feridas históricas. De acordo com ponto de vista, a solução se encontra dentro de cada um. Não por acaso, a narrativa se situa numa cidadezinha fictícia: nenhum local verossímil teria os problemas e as soluções da pitoresca Clourrières.

A guerra dos sexos, subgênero da comédia propenso às caricaturas, ganha um novo exemplar nos moldes de Se Eu Fosse Você (2006). Mulheres passam a desempenhar “funções masculinas” como o esporte, enquanto homens se ocupam a contragosto das “funções femininas” como os cuidados com a casa e os filhos. A dualidade de concepções que se supõem exclusivas e opostas (homem/mulher) constitui um retrocesso em si. Em paralelo, os homens são machistas e grosseiros, com raras exceções, enquanto as mulheres demonstram o desconhecimento absurdo do jogo nas primeiras partidas (elas erram o lado para onde chutar). Hamidi parte do princípio que o humor permitiria os exageros e licenças poéticas. No entanto, a transposição de temas urgentes (islamofobia, inserção profissional feminina, violência doméstica) implica numa responsabilidade quanto ao retrato. O principal problema das protagonistas diz respeito à censura do marido, contornando-se a situação quando estes permitem a participação das esposas no jogo. A “conquista” delas se situa no meio-termo entre a condescendência e a manutenção do patriarcado. Aliás, a suposta homenagem às mulheres tem como personagem principal um homem, o treinador Marco (Kad Merad), sujeito que acredita em suas jogadoras, porém sem considerá-las equivalentes à equipe masculina. A solução para os dilemas femininos se encontra em fazer as pazes com os maridos: não há vida afetiva e social feliz longe da maternidade ou do casamento.

Donas da Bola proporciona um otimismo distante das demandas femininas contemporâneas por mirar a todo custo na conciliação. Nenhum problema soa tão grave que não possa ser corrigido na cena seguinte, ou magicamente resolvido na conclusão. Hamidi acredita no abraço fraterno entre as diferenças, sem saber ao certo como atingir este estado de paz. Por isso, utiliza saltos temporais para passar do caos à harmonia. Sandra acredita que seu passado nunca será aceito pelas colegas. Minutos após a revelação, o problema não existe mais. Um dos maridos demonstra-se violento quanto à participação da esposa nos jogos. Em seguida, ele aceita o problema, abre as portas de casa aos treinos e adquire dezenas de esteiras ergométricas para o preparo físico das atletas. Apresenta-se a seguinte solução ao preconceito: não seja preconceituoso. O raciocínio possui a pureza das histórias infantis sobre príncipes e princesas que vivem felizes para sempre, ou ainda a artificialidade do deus ex machina, recurso clássico das artes dramáticas onde, após muito embate, uma figura divina literalmente desce dos céus para dizer aos lados opostos que parem de brigar e façam as pazes. A estética alegre, as cores fortes, os personagens trapalhões aproximam o humor da ingenuidade: para o filme, as melhores pessoas são tolas, como Marco, Mimil (Alban Ivanov) e Catherine.

Isso não impede que a comédia tenha bons momentos, além do ritmo agradável. Os atores, sobretudo aqueles mais experientes na comédia, sabem brincar com os diálogos e o humor físico – caso de Kad Merad, Laure Calamy e Alban Ivanov. O cinema industrial francês oferece anualmente dezenas de obras a partir desta fórmula: comédias de fundo social, porém politicamente inofensivas, capazes de rir com os personagens sem rir deles. Assim, conquistam parte razoável do público e da crítica, cumprindo suas ambições modestas. As partidas jamais soam verossímeis, nem mesmo a extensa trajetória do treinador no futebol, ou ainda a mudança de humor repentina dos vilões. Entretanto, os atores desempenham seus papéis com descontração jovial. O conjunto aparenta se divertir em cena, sem levar as reviravoltas muito a sério - eles estão conscientes de suas personas, transparecendo real entrosamento entre o elenco. O resultado se assemelha a um filme para adultos em moldes das histórias infantis, com ensinamentos morais visando o crescimento pessoal.

Filme visto online no Festival Varilux de Cinema Francês, em novembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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