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Crítica


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Sinopse

Salvador Mallo é um melancólico cineasta em declínio que se vê obrigado a pensar sobre as escolhas que fez na vida quando seu passado retorna. Entre lembranças e reencontros, reflete sobre sua infância na década de 1960, seu processo de imigração para a Espanha, seu primeiro amor maduro e sua relação com a escrita e com o cinema.

Crítica

Salvador já teve seus momentos de glória. Tudo o que lhe resta, no entanto, é dor. E essa se alastra por todo o seu corpo. Da cabeça, que lateja intermitentemente, às pernas, que mal lhe sustentam em pé, passando pela garganta, que o faz engasgar por qualquer coisa, ou as costas, que o obriga a descansar sempre que possível. É como se carregasse o peso do mundo há tanto tempo que, agora, não mais tem condições de seguir em frente. E o problema não está na rotina que leva, praticamente sem sair de casa, cercado por uma secretária e uma empregada doméstica que lhe dão todas as atenções necessárias e o mantém distante do mundo real. As causas podem estar muito atrás. Do tempo de criança, do talento que o salvou e o perdeu, dos amores pelos quais passou e não conseguiu reter. Dor e Glória é tanto sobre esse personagem quanto sobre o próprio Pedro Almodóvar, que entrega, aqui, muito provavelmente, aquele que pode ser considerado o seu filme mais pessoal. E isso, definitivamente, não é pouca coisa.

No começo, os olhos. Estão fechados, e há água por todos os lados. Somente submerso, Salvador – vivido com impressionante entrega e delicadeza por Antonio Banderas, no melhor desempenho de sua carreira – parece esquecer de suas dores. Mas ele não pode ficar ali para sempre, e assim que coloca o pé no seco, alguém ali estará para lhe lembrar de quem é: o grande Salvador Mallo, cineasta que já viajou o mundo com seus filmes, trabalhou com os maiores astros e estrelas, mas que atualmente se afastou de tudo e todos, justamente por não conseguir mais lidar consigo mesmo. Um convite, no entanto, lhe desperta a atenção: Sabor, longa que dirigiu trinta anos atrás, teve sua cópia restaurada (“se deram conta que é um clássico, veja só”) e será exibido novamente nos cinemas. Querem que ele e o protagonista, Alberto Crespo (Asier Etxeandia, de Ma ma, 2015), apresentem e comentem a obra em uma sessão especial. Há apenas um detalhe: os dois não se falam há três décadas, justamente pelo diretor ter criticado a performance do ator (“ele destruiu o meu filme”).

Mas a vida ensina lições valiosas. E uma delas é aprender a perdoar (“revi Sabor uma ou duas semanas atrás e, preciso confessar... Alberto parece ter melhorado”). Ao retomarem o contato, Salvador é apresentado a algo que nunca havia experimentado: a heroína. Com ela, vem também a possibilidade de se perder de si mesmo. Ao mesmo tempo em que vai resgatando o início de sua trajetória – enquanto a mãe lavava lençóis à beira do rio, a noite mal dormida na rodoviária à espera para voltar para casa, a mudança para uma caverna – único lugar decente encontrado pelo pai – ou a ida para o seminário (“não quero ser padre”) – tem a oportunidade de ver a si mesmo, olhando distante e, quem sabe, imaginando quem será amanhã, se esse lhe permitir conhecer. Os sacrifícios dos pais viraram temas dos seus filmes, a oportunidade de participar do coro lhe fez ignorante, a arte o apresentou para o mundo. O inferno parece lhe aguardar de portas abertas, mas ainda há o que fazer antes de dizer “adeus”.

Dois elementos assumem destacada importância nessa caminhada: o sexo (ou seria o amor?) e a mãe (ou seriam as mulheres?). Ainda muito jovem, se descobre homossexual. Vem dos ensinamentos religiosos a noção do pecado, e talvez por isso se entenda o desmaio ao ver um homem nu pela primeira vez. Mas o que lhe falta é companhia, carinho, fazer parte da vida de alguém. Em pequenos gestos, se percebe que a relação entre Salvador e Alberto talvez tenha ido além do profissional. Mas se alguma vez tiveram algo de fato, foi efêmero e em nenhum dos dois deixou marcas. Ao contrário do vivido com Federico (Leonardo Sbaraglia, que transborda emoção no olhar). A paixão de tantos anos antes pode estar de volta, mas não se sente a mesma coisa duas vezes (“os homens acabaram, para mim, com você”). É mais bonita a lembrança do que a concretude, a imaginação do que a mera possibilidade.

Por outro lado, não é coincidência que a mãe do protagonista seja vivida por duas das mais icônicas ‘mulheres de Almodóvar’: Penélope Cruz, na juventude, e Julieta Serrano, quando idosa. Cada uma delas já havia atuado sob o comando do cineasta em outras cinco ocasiões anteriores. Agora, representam essas duas facetas da mulher que o criou e fez dele o homem que é. Quando criança, estava tudo no olhar dela, que notava a semente de algo maior e diferente dentro do filho, mas guardava para si. Já perto da morte, as palavras se atropelam, e não teme mais lhe dizer as verdades (“tu não foste um bom filho, sei que nunca me perdoou”). É o tapa na cara que ele precisa. Os traumas, antigos e recentes, o rodeiam com fantasmas, afastando-o do auge e afundando-o na autocomiseração. Porém, ao olhar dentro de si, somente assim conseguirá voltar ao início de tudo. A ele mesmo. No interior de Salvador está o âmago de Almodóvar, que deixa de lado qualquer distração, sem nunca abandonar suas cores, desejos e histórias. Assim, faz de Dor e Glória não um testamento, mas um testemunho. E essa é a diferença.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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