Crítica


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Sinopse

Um homem e uma mulher são sequestrados. Eles não se conhecem. Seu primeiro contato acaba sendo num porta-malas de um carro em trânsito pelas ruas de São Paulo.

Crítica

A premissa deste projeto é muito interessante: duas pessoas são jogadas no porta-malas de um carro quando um grupo de assaltantes decide roubar o veículo. Ele era o motorista, e ela, uma mulher que passava pela rua naquele momento. Dali em diante, são arrastados para algum lugar desconhecido, sem saberem como fugir. A tensão é inerente ao conflito inicial, facilitando a identificação com os protagonistas – como não se identificar com as vítimas do sequestro? Dora e Gabriel (2020) se passa quase inteiramente dentro de um porta-malas, onde ambos passam a se conhecer durante a noite. Mas como desenvolver uma narrativa inteira dentro de um espaço tão restrito? Como iluminar o porta-malas escuro, de que maneira criar dinamismo nas cenas, fornecer momentos plasticamente interessantes? Ugo Giorgetti, apaixonado pela clausura e pelos impasses, e afeito ao humor de situações – vide a banda que não toca em Festa (1989), as pessoas presas no elevador em Sábado (1995), a excursão que não se move em Uma Noite em Sampa (2016) –, mergulha novamente na crônica de uma impossibilidade. Ao invés de filmar a ação lá fora, prefere atribuir a si próprio um belo desafio narrativo e imagético.

Apesar de tamanho potencial, algumas escolhas enfraquecem o filme. Por restringir tanto o espaço e a possibilidade de ação, os sons fora de quadro se tornam ainda mais importantes. Recentemente, Culpa (2018) criou uma trama de ação eletrizante através dos sons de uma ligação telefônica, e o ataque de um pai violento em Custódia (2017) acontecia quase inteiramente pelos barulhos na porta, os gritos, o som de revólveres, as ameaças. No subgênero dos filmes de clausura, Enterrado Vivo (2010) apostava tanto na paisagem sonora que até sugeria a presença de uma cobra invasora para provocar tensão. Ora, o filme brasileiro desenha um horizonte sonoro limitado: escutamos o chão de asfalto, o paralelepípedo, o carro atolado. Quase todo o imaginário de sons está ligado ao chão, enquanto teria sido possível explorar as falas dos ladrões, os outros carros ao redor, os passantes nas ruas etc. O som seria fundamental para o desenvolvimento narrativo, sugerindo para onde estão sendo levados, por qual motivo, e quais ameaças pairam sobre à vida de ambos. Giorgetti prefere a dinâmica pragmática: o carro parece se deslocar a lugar nenhum, sem objetivo preciso. (Não por acaso, ao final, o carro alcança justamente a concretização do lugar nenhum).

Enquanto isso, os personagens limitam-se a descrever sons que o público poderia compreender por conta própria: “Estamos num lugar coberto. Alguma garagem”, “Paralelepípedos. Asfalto de novo. Cheio de buracos”, ou “Estrada de terra. Poças d’água”. Quando finalmente observam o espaço externo e descobrem estar sozinhos, traduzem a imagem: “Nada. Ninguém. Abandonaram a gente”. Por que não deixar o público deduzir sozinho estes elementos tão simples? Mesmo a respiração difícil de Dora ganha uma tradução imediata: “Eu tenho asma. Asma nervosa”. Curiosamente, passamos 82 minutos presos com dois personagens, e terminamos a narrativa sem saber praticamente nada sobre nenhum deles, porque ambos se restringem à comunicação descritiva. A reação inicial dela, sugerindo a islamofobia diante de Gabriel, imigrante libanês, poderia sugerir um interessante choque entre opostos obrigados a conviver. O que aconteceria se um homem progressista e uma mulher fanática por Bolsonaro estivessem presos no porta-malas do carro? O roteiro jamais vai tão longe, no entanto. Ele se resume à imagem do homem solitário, e ela, a de uma mulher vagamente poderosa. Nenhum dos dois se transforma ao longo da experiência, nenhuma amizade marcante surge desta experiência. Deste modo, eles não representam duas gerações diferentes, dois gêneros se confrontando, duas visões diferentes sobre o crime, duas visões sobre São Paulo ou mesmo sobre o Brasil. Eles se resumem a corpos arrastados contra a sua vontade.

Dora e Gabriel planta diversas sementes de conflito sabotadas imediatamente pelo próprio filme. A presença de uma criança dentro do carro forneceria a oportunidade de manipular o garoto a favor da dupla, e tentar fugir num momento de distração dos bandidos, porém o elemento é dispensado. Uma lanterna poderia trazer uma composição totalmente diferente àquele espaço, o que tampouco se concretiza. A ideia do papelzinho com uma mensagem de socorro (e como raios jogariam para fora do carro?) é insinuada duas vezes, apesar de não surtir efeito algum. Aparentemente, o cineasta se orgulha de listar diversos motivos típicos do suspense para recusá-los um a um. Ele poderia mover a trama se quisesse, e saberia como, mas prefere não fazê-lo. Em mais de uma oportunidade, a fuga é facilitada por uma tampa mal fechada ou pela chance de gritar por socorro. Mas nada disso acontece. O diretor prefere uma dinâmica teatral e absurda, rompendo com o naturalismo rumo ao realismo fantástico. Assim, aposta num imaginário padrão da bandidagem (o cano do revólver no buraco rasgado) e nos quiproquós improváveis (o sexo, a farinha, a escola de samba). Giorgetti se apropria de uma premissa típica da ação e do suspense para lhe retirar a ação e o suspense, concentrando-se num humor agridoce baseado na frustração voluntária das recompensas emocionais.

Visto que existem apenas dois atores em cena o tempo inteiro, o desempenho do filme depende muito da prestação do elenco. Ary França, sempre versátil, consegue brincar com as entonações e os diferentes momentos do sequestro (o desespero, o conformismo, a revolta, a melancolia), evitando a caricatura do sotaque libanês. Já Natália Gonsales demonstra variação limitada, interpretando todas as suas falas de maneira bastante agressiva e ex-ces-si-va-men-te ar-ti-cu-la-da. Nem os instantes absurdos extraem alguma diversidade de registros em Dora. O tratamento do tempo tampouco ajuda: os dois se desesperam, se odeiam e se aliam com uma rapidez inverossímil. Em menos de dez minutos de narrativa, ele dispara: “Agora somos só nós dois. Senão a gente vai ficar mais sozinho ainda”, ao que ela responde: “Vamos esquecer o que a gente é lá fora”. No entanto, este momento de lucidez e distanciamento soa inverossímil para duas pessoas sequestradas minutos atrás. Passado pouco tempo, Dora questiona: “Será que ainda é noite lá fora?”. Há dificuldade em trabalhar as elipses e as gradações, reservadas a fades pouco expressivos. Em paralelo, o texto é escrito demais, fruto da teatralidade da mise en scène, enquanto Walter Carvalho faz o possível para iluminar de maneira crível o porta-malas, mas não consegue fornecer imagens esteticamente instigantes. Resta um cinema lúdico e brincalhão, chegando a um resultado menos satisfatório do que sua premissa poderia sugerir.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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