
Sinopse
Depois de todo cataclismo provocado por Thanos, Stephen Strange e seu parceiro Wong enfrentam uma ameaça poderosa que surge do multiverso. Porém, o inimigo é mais familiar do que eles poderiam imaginar.
Crítica
Uma parcela menos fanática dos milhões de espectadores dos filmes da Marvel frequentemente reclama que o estúdio sacrifica a personalidade em prol da construção de um conjunto. Assim sendo, as singularidades são prejudicadas em projetos caríssimos, vitaminados por campanhas de marketing não menos “salgadas” e cuja missão comercial é chegar o mais próximo possível do bilhão de dólares de arrecadação. Então, pode-se dizer que a contratação do cineasta Sam Raimi para comandar Doutor Estranho no Multiverso da Loucura impôs imediatamente uma dúvida: como garantir a existência das marcas de um artista autoral numa realização que precisa atender a certos pressupostos para se encaixar num plano mais amplo, feito de inúmeras outras pecinhas que devem ter sentido num universo compartilhado? Das duas, uma: ou Raimi se curvaria às regras dessa engrenagem moedora de criatividade ou tomaria as rédeas do mastodonte para fazer algo com a sua assinatura pessoal. Nem tanto ao céu, nem ao inferno. O que vemos na telona é a mistura das duas alternativas. De um lado, um filme que repete estratégias corriqueiras nas empreitadas do estúdio, sobretudo a fim de manter uma aura de coesão; de outro, os rompantes estético-narrativos de um sujeito que ajudou a pavimentar o caminho para essa onda de super-heróis ao capitanear os primeiros filmes do Homem-Aranha.
A história não poderia ser mais simples, pois gira em torno de um dos tropos narrativos mais utilizados de Hollywood: a mulher em perigo. Strange (Benedict Cumberbatch) é encarregado de salvar uma desconhecida de um monstro não menos estranho que parece extraído da imaginação do escritor H. P. Lovecraft – numa sequência com ingredientes de horror clássico, tais como a incursão da aberração gigante que ameaça destruir a cidade. Essa quase vítima é America Chavez (Xochitl Gomez), peça fundamental dessa nova fase do Universo Marvel em que o conceito de multiverso será a maior vedete. A jovem possui a capacidade de abrir portais entre as realidades e por isso desperta a cobiça de Wanda (Elizabeth Olsen), ou melhor dizendo, da invencível Feiticeira Escarlate. Transformada em vilã, ela pretende se apropriar dos poderes da menina para ter uma família. Tirando o contexto fantástico, as criaturas estranhas, os poderes inimagináveis e a possibilidade de ter versões alternativas de todo mundo, a trama mostra um homem chamado novamente ao heroísmo enquanto passa por uma crise pessoal. Aliás, o calcanhar de Aquiles de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura é exatamente a displicência nas horas de definir a espessura dramática do protagonista, especialmente por meio dos resquícios de uma desilusão amorosa. Diferentemente de Peter Parker, que em Homem-Aranha: Sem Volta para Casa (2021) era compreendido também a partir dos dilemas, Strange é útil apenas como herói.
Mas, o que Doutor Estranho no Multiverso da Loucura tem de mais genérico? A trama feita de pequenas tarefas (como nas séries procedurais) que acumulam novidades. Dentro disso, a sensação de visita guiada excede os limites aceitáveis em certos momentos. Sempre tem alguém em cena disposto a “mastigar” as circunstâncias para o espectador não precisar pensar; em cada lugar diferente sempre há alguém disposto a dizer onde todos estão, como chegaram ali e de que maneiras alcançar uma saída possível; sempre que uma pessoa faz algo enfatizado como importante para o todo, alguém imediatamente explica detalhadamente o que aconteceu para um colega convenientemente desavisado (ele está explicando para o espectador, na verdade). As cenas de batalha são dinâmicas, mas muitas não empolgam porque se resumem a duelos de magias que colocam atores e atrizes à distância fazendo caras e bocas, enquanto os efeitos digitais materializam os encantos. Nesse sentido, o longa-metragem não tem tanta fisicalidade, ficando basicamente refém da suntuosidade que a pós-produção conjura. Enquanto Strange e América fogem da Feiticeira, compreendemos melhor como funciona o multiverso, quais as fontes poderosas de magos e feiticeiros, além de quais artefatos garantem o sucesso do bem diante do mal. Funciona, mas poderia ser menos comum, mais emocionante e vigoroso.
Então, o que Doutor Estranho no Multiverso da Loucura tem de menos genérico? Os momentos em que a criatividade visual de Sam Raimi rompe as convenções Marvel. Wanda correndo atrás dos mocinhos coberta de sangue, arrastando a perna pelos corredores do labirinto é uma imagem claramente evocativa da tradição do horror; a luta da vilã contra um time de super-heróis formado em outro universo – a revelação deles é a maior surpresa da trama – tem ingredientes de violência pouco frequentes nesses blockbusters atuais; por fim, a circunstância que envolve o surgimento de um Vingador zumbi. Isso mesmo: zumbi. Provavelmente, é a imagem mais estilosa e fora da curva das recentes produções do estúdio. Em parte, Sam Raimi cumpre a promessa de fazer o primeiro filme de horror do Universo Marvel que atualmente agrega também as narrativas televisivas. O diretor exibe a sua assinatura pessoal em instantes-chave e chega a tirar a trama de um lugar-comum confortável em certas passagens muito boas. Mas, a despeito disso, não evita determinadas recorrências que se tornaram chavões nos filmes Marvel, haja vista a transformação do espectador num agente passivo que espera receber mais do mesmo como recompensa de fidelidade. Há pouco espaço à provocação nesse tipo de produção condicionada por convenções de mercado, mas Raimi dá conta de divertir (e às vezes assustar) nos pouco mais de 120 minutos.
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