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Sinopse

Na infância, Danny Torrance conseguiu sobreviver a uma tentativa de homicídio por parte do pai, um escritor perturbado por espíritos malignos. Danny cresceu, e agora é um adulto traumatizado e alcoólatra. Sem residência fixa, se estabelece em uma pequena cidade, onde consegue emprego no hospício local e cria um vínculo telepático com uma menina, paciente da instituição.

Crítica

Hotel Overlook, machados quebrando portas, “Redrum”, garotinhos pedalando pelos corredores, velhas assustadoras saindo de banheiras, elevadores despejando sangue pelo saguão, quarto 237, o “amigo imaginário” Tony, o Gold Room, gêmeas de vestidos idênticos chamando para brincar, os mosaicos e temas quadriculados dos carpetes. Para os fãs nostálgicos de O Iluminado (1980), esta sequência traz tantas referências às cenas do original que funciona simultaneamente como extensão da primeira trama e como ferramenta de sustentação do imaginário relacionado ao clássico. O novo projeto, adaptado de outro livro de Stephen King e pensado para o público pós-moderno, busca fornecer tanto um olhar para o futuro dos personagens quanto um resgate do passado. Em outras palavras, ele procura ser algo novo, e mais do mesmo.

Há diferentes níveis de citações a O Iluminado em Doutor Sono. O primeiro deles é o resgate idêntico de algumas cenas, como o elevador e o Gold Room. Nestes casos, o diretor Mark Flanagan parece ter extraído imagens diretamente do trabalho de Stanley Kubrick. Em seguida, há recriações, com novos atores interpretando versões muito próximas de Jack Nicholson e Shelley Duvall. Neste caso, a comparação é inevitável e voluntária: Alex Essoe repete as respirações profundas e a gesticulação excessiva de Wendy Torrance, enquanto Henry Thomas arqueia a sobrancelhas enquanto busca o palavreado cínico de Jack Torrance. Por fim, há simples evocações deslocadas do original: a famosa velha assustadora aparece em novos contextos, a gêmeas do corredor surgem em cenas inéditas. Mesmo a direção inspira-se na decupagem famosa: quando o pequeno Danny descobre o quarto 237, ou durante a ameaça na escadaria, a escolha de imagens e ângulos é idêntica àquela de Kubrick.

Apesar do minucioso museu de homenagens, a nova trama não poderia ser mais distante do filme que lhe deu origem. A história de 1980 partia de uma situação banal para desenvolver a possibilidade de loucura através do suspense psicológico – um pai de família comum se isolava num hotel com esposa e filho, até perder a razão e começar a atacá-los. A clausura servia de catalisador para os conflitos, enquanto a “iluminação” do pequeno Danny constituía uma discreta evocação da comunicação com os mortos. Agora, abraça-se o sobrenatural desde o início para mergulhar num universo fantástico incluindo pessoas dotadas de capacidade de voo, vilões perversos e uma “iluminação” que inclui o poder da telecinesia (as colheres no teto) e a capacidade de entrar na cabeça de pessoas para controlar seus pensamentos. Este imaginário se aproxima dos super-heróis e super-vilões contemporâneos ao favorecer batalhas do bem contra o mal, dos sofredores (Danny adulto enfrenta o alcoolismo, a jovem Abra Stone é vítima de bullying na escola) contra os opressores.

Deste modo, o realismo é substituído por uma representação alegórica, incluindo figuras como Rose Cartola, Pai Corvo, Barry Tapa. Fala-se num vapor rejuvenescedor, em personagens que “ciclam”. De acordo com um diálogo, o grupo perseguidor “come gritos e bebe sofrimento”. Rebecca Ferguson, numa mistura de bruxas clássicas com Jack Sparrow, chega ao confronto com o inimigo ao som de um desafiador “Well, well, well” digno de Malévola. O grupo maligno condensa diversos elementos considerados nocivos pela sociedade conservadora: as gangues de rua, os ciganos, os latinos, as adolescentes rebeldes e sexualizadas, os feiticeiros. A ideia de magia agora é exteriorizada. De modo geral, o novo filme propõe sublinhar as construções do primeiro filme – a loucura, a “iluminação” – para tornar os efeitos supostamente mais fortes e mais evidentes ao público médio. Não há jump scares nem exagero de efeitos sonoros destinados ao susto, no entanto, o roteiro julga necessário que os personagens tenham suas posturas morais bem definidas aos olhos do público.

O resultado é uma produção competente, muito cuidadosa ao lidar com um filme querido, e comandada por bons atores – Ewan McGregor sempre encarna com destreza os homens traumatizados. Entretanto, Doutor Sono modifica substancialmente a essência do clássico. Os fãs do livro dirão que a obra se revela mais fiel ao trabalho de Stephen King – afinal, o escritor nunca ocultou sua insatisfação com a adaptação de 1980. No entanto, era justamente o trabalho de gradação e a construção da loucura que interessavam tanto no primeiro filme, além do rigor estético excepcional de Kubrick. Já Flanagan, diretor competente de algumas das melhores obras de terror recentes, não pode escapar às comparações numa obra destinada precisamente a espelhamento do original. Pensado enquanto filme autônomo, acessível a um público que não assistiu a O Iluminado e talvez nem pretenda fazê-lo, o projeto de 2019 deve funcionar como incursão eficaz no terror, visitando um espaço que se mantém fascinante, décadas mais tarde: o hotel Overlook, seja ele o palco naturalista de uma tragédia familiar ou o cenário assombrado onde almas se confrontam numa batalha de poderes.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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