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Sinopse

Filantropa e fundadora de um grupo de caridade, a médica Elizaveta Glinka está em maus lençóis ao roubar morfina de um hospital para amenizar as dores de uma pequena paciente terminal que sofre de câncer. Ela vai ter de correr contra o tempo para repor o raro medicamento enquanto luta contra as engrenagens da burocracia russa.

Crítica

Destaque da segunda edição do Festival de Cinema Russo, Doutora Liza é claramente um filme-homenagem. Conforme informado nos créditos finais, a médica Elizaveta Glinka morreu em 2016 durante um voo que levava ajuda humanitária à Síria. E os produtores fazem questão de agradecer ao marido dela pelo apoio à realização dessa cinebiografia. Portanto, estamos diante de um longa-metragem que existe fundamentalmente para celebrar a vida e a obra da filantropa conhecida por não medir esforços à promoção do bem-estar alheio. Tendo essa intenção em vista, podemos pensar o conjunto a partir do objetivo (elogiar), que é seu motivo de existir. Mas, será que a cineasta Oksana Karas cumpre a função de festejar a memória da personalidade morta durante o cumprimento de sua vocação, ao menos, não criando um tributo artificial? Há algumas armadilhas que a realizadora burla com habilidade e outras nas quais ela cai de modo ligeiramente conveniente. Primeiro de tudo, é interessante a observação da relação entre a vida íntima e o trabalho extenuante da protagonista. O cinema está farto de personagens masculinos que priorizam a carreira enquanto suas esposas/namoradas seguram as pontas em casa. E quando há uma inversão, com a mulher sendo condicionada pela vocação que a leva a deixar o âmbito doméstico meio desguarnecido, frequentemente há uma demonização da ausência.

Em Doutora Liza, a protagonista não é observada como vilã pelo marido e tampouco pelos filhos de passagem pela Rússia para uma comemoração familiar. Há a sinalização da insatisfação dos jovens quanto à incapacidade da mãe de sossegar, mas nada que desague em cenas de gritarias com mágoas e "verdades inconvenientes" sendo desferidas durante discussões acaloradas. Gleb (Andrzej Chyra), o marido, é uma figura compreensiva ao máximo, alguém que se esforça para manter as coisas funcionando mesmo diante do pouco tempo na companhia de sua esposa. Ainda que em alguns instantes essa indulgência irrestrita chegue bem perto de parecer uma edulcoração (provavelmente houve atritos nessa relação), ela serve bem ao intuito de romper com o estereótipo da mãe culpabilizada por permanecer mais horas exercendo sua função do que se dedicando estritamente à família. Além do mais, Liza não é vista como alguém que deixa de fazer alguma coisa por estar à disposição dos mendigos e desamparados de toda sorte. Ela é uma mulher incansável que dá conta de conversar com os filhos nos intervalos, de verdadeiramente se importar com as demandas do marido, de cuidar de uma instituição de caridade e ainda dar suporte a quem a procura com poucas esperanças de ser amparado. E essa força da mulher aguerrida é expressada pela ótima composição da atriz Chulpan Khamatova.

Mesmo que estejamos diante de uma homenagem sem muitos espaços para áreas cinzentas e/ou algo que deponha contra a imagem então imaculada da falecida, Chulpan Khamatova oferece nuances para insinuar a complexidade desse exemplo de altruísmo. Porém, voltando às armadilhas das quais a cineasta Oksana Karas não escapa totalmente, é importante citar a trajetória presumível e comum da transformação do agente Kolesov (Andrey Burkovskiy). Convocado a indiciar a protagonista depois que ela rouba morfina para amenizar as dores de uma criança com câncer terminal, ele é desenhado como um sujeito gélido que cumpre a lei. Tanto que é apresentado ao demonstrar insensibilidade pelos problemas do pai alcoólatra numa casa de repouso. Uma vez que o caminho do burocrata empedernido cruza com o da protagonista que, ao contrário, é puro coração, fica claro que ele será ensinado a ser mais sensível. E O Doutora Liza faz justamente o que se imagina a partir desse aceno ao convencional. Kolesov começa tentando enquadrar Liza na frieza da lei, pouco se lixando se a conduta da medica possui fundo humanitário. Aos poucos, vai amolecando diante desse notável exemplo de vida. Levando em consideração que o filme se passa durante um dia, as mudanças de perspectivas podem ser consideradas abruptas. E isso está posto na cena dele repentinamente decidindo dar uma chance a ela.

Mas, se por um lado, Kolesov vem de um arquétipo bastante reconhecível, o que torna certos desdobramentos previsíveis, por outro, ele é um dos pilares de algo sendo cozinhado paralelamente à homenagem prestada a Elizaveta Glinka. Um dos empecilhos à protagonista é a burocracia que rege a Rússia. E a cineasta Oksana Karas faz questão de eleger processos e mecanismos como vilões. Primeiro, ao mostrar o pai desesperado por não conseguir morfina (e precisa ser numa farmácia específica); segundo, ao expor a maldade de seguir cegamente as regras (se a doutora não rouba a morfina, a menina sofre); terceiro, ao observar a força que Liza faz para evitar sua prisão (ela conhece os caminhos nos quais luta); quarto, ao enfatizar as penalidades administrativas impostas a médicos e enfermeiras vigiados como se fossem potenciais bandidos (num cotidiano tenso de negociação constante com a morte); quinto, na dinâmica com a conselheira tutelar (uma caricatura de funcionária pública que igualmente pretere as pessoas em favor da lei). O filme exerce uma crítica ao governo nas entrelinhas dessa celebração sem controvérsias que arranhem a imagem da protagonista. Outro ponto positivo é a presença do coadjuvante assumidamente gay, ainda que o mesmo caia no clichê do “melhor amigo da protagonista”. Tendo em vista que a Rússia é um país hostil à comunidade LGBTQIA+, a simples existência dele é bem-vinda nessa hagiografia que canoniza o indivíduo e expõe deficiências do Estado.

Filme visto online durante o 2º Festival de Cinema Russo, em outubro de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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